Ao contrário do que disseram todos os representantes dos partidos de esquerda, Cavaco Silva fez bem em indigitar Passos Coelho. Não é uma perda de tempo, como disseram, porque os eleitores não passam cheques em branco aos partidos. Se a democracia vale para uns – que têm maioria parlamentar – também vale para outros – que ganharam as eleições.
1. Há uma tradição de indigitar o partido ou coligação vencedores das eleições. Mesmo que se desmembrasse a coligação de direita, o PSD continuaria a ser o partido com mais assentos em São Bento: 89 representantes contra 86 do PS. Cavaco cumpriu essa tradição, que me parece saudável, de o mais votado formar governo.
2. A tomada de posse de um governo de direita, agendado para um destes dias, obrigará o PS a justificar no Parlamento a razão pela qual o chumbará. De novo, parece-me saudável que assim aconteça. O programa com que os socialistas se apresentaram a eleições estava, no essencial, mais próximo do da direita do que dos da esquerda. As medidas de contenção de despesa (congelamento das pensões) e mesmo as de recuperação de rendimentos (fim da sobretaxa no IRS e da Contribuição Extraordinária de Solidariedade) eram mais da família do PSD/CDS e as da descida da TSU e do regime conciliatório de despedimentos podiam mesmo ser consideradas liberais. Era o DNA de Mário Centeno nas propostas económicas do PS. Que os socialistas agora tenham de explicar aos seus eleitores por que razão não aprovam um programa de governo mais próximo das suas propostas eleitorais parece-me o mínimo, em democracia. O PS não pode – nem nenhum outro partido – receber um cheque em branco.
3. Os deputados deviam ser autónomos e pensar pelas suas cabeças. Sei que é pedir muito, no regime português. Faça-se, contudo, a prova dos nove. Sujeite-se o programa do PSD ao teste parlamentar e veja-se se tem o apoio da maioria da câmara. No PS, há uma ala descontente com as negociações à esquerda. Um dos deputados eleitos, Sérgio Sousa Pinto, que se sentou na primeira fila no dia da tomada de posse, dias depois de ter abandonado o Secretariado Nacional e de ter discutido, «aos gritos», com António Costa, é contra essas negociações. Vejamos se foi apenas um birra e o que pensam outros, que foram menos estridentes.
4. Caso o governo chumbe no Parlamento, na minha opinião Cavaco Silva deve dar posse a um governo de esquerda. É a democracia a funcionar. E, de novo, estaremos perante um gesto de salutar teste parlamentar. Os socialistas terão de apresentar o seu programa de governo e explicar por que razão abandonaram medidas que eram centrais nas suas propostas. Oiçamos as explicações, oiçamos o que tem a dizer Mário Centeno. E depois de nos terem apresentado um programa eleitoral com as contas todas detalhadas – o mais pormenorizado de que me recordo, e por isso aqui o saudei – espera-se que detalhem como as suas concessões para formar governo afetam as contas públicas.
Estes processos demoram tempo mas legitimam. Há exames de que não podemos prescindir.