Não gosto muito de filmes com crianças e com animais mas gosto de filmes com velhos. Na verdade teria de abrir uma exceção à declaração anterior, pois Fanny e Alexander centra-se em duas crianças, ou melhor, em uma, Alexander, e é das coisas mais maravilhosas, comoventes e interpelantes a que pude assistir no cinema. Se escrevi aquela primeira frase, contudo, é porque precisava de um introito para evocar Morangos Silvestres.
A viagem do professor Isak Borg começa com um sonho em que o teimoso velho de 78 anos se confronta com o seu próprio fim, que não está longe. A parte substancial do filme de Ingmar Bergman é a viagem de carro entre Estocolmo e Lund, onde será agraciado pela sua carreira como médico e investigador. Mas pelo caminho há as intermitências da vida (ou da morte?) recordada, reinterpretada, reorganizada pelo velho homem, ontem e hoje amargo, agora frágil.
Isak para o carro à beira do caminho e, enquanto a sua companheira de viagem e nora se banha nas águas do Báltico, caminha em direção a um canteiro de morangos silvestres, junto à casa onde passou a sua juventude. É aí transportado para o passado, para a altura em que louco de amor pela sua prima, Sara, ali passava os verões. Mas Sara trocou-o por Sigfrid, seu irmão. É a primeira das “viagens”, das muitas em que se desdobra o filme, em que Isak, o seco e árido Isak que esquecera o amor, se reencontra com o seu passado. É também o mais comovente momento do filme, aquele em que o velho médico observa a amada a amar outro, o irmão pelo qual viria a ser trocado. E ainda por cima ela sente-se culpada…
É também o primeiro momento de vários em que revisita a sua vida. Mas esta reminiscência tem uma concretização no presente: quando acorda do seu sonho, Isak dá boleia a uma jovem, réplica de Sara, também ela amada por dois rivais. Os três jovens seguem consigo de carro durante a viagem. A sensualidade da rapariga, sentada no banco de trás do carro entre os dois rapazes que a disputam, faz lembrar outro filme de Bergman, Mónica e o Desejo, mas essa é outra história… Para já lembre-se apenas que no carro seguirá também um casal, os dois amargos, os dois constantemente às bicadas um ao outro, tristes e sós nas suas carapaças, como Isak e a sua mulher foram. O desalento e o cansaço de uma relação que nunca mais foi do que um solilóquio interpretado para o outro contrastam com a esperança da juventude e com o desejo que se pode cortar à faca no branco de trás…
Claro que o filme é magnífico por causa do seu realizador. Bergman é conhecido por essas personagens introspetivas, encarceradas em si, e pela mise en scène ao serviço do drama (lembro-me de novo de Fanny e Alexander, inspirado na infância do cineasta, e da cena do jantar na casa da avó dos garotos…). As suas temáticas são conhecidas: religião, solidão, drama existencial, o isolamento… E a este propósito pode-se dizer que Morangos Silvestres está ao nível do que de melhor Bergman (e portanto todos os outros) fez. Mas o que torna este um dos filmes da minha vida? Bom, o ator. Como aqui escreveu no início da semana o Luís Valente Rosa, o melhor ator “é o que melhor nos transmite a interrogação e a perturbação de um ser humano perante os estímulos emocionais que nos colocam perante a grandeza da dimensão humana”. E é isso que o também ele velho Victor Sjöström nos garante desde o primeiro momento em que aparece no filme, na cena inicial do sonho, quando vagueia por uma rua incaracterística: interrogações sobre o que somos e não podemos deixar de ser, sobre o que não somos e ainda podemos vir a ser, mesmo que à beira da morte…