Quando esta crónica for publicada na VISÃO já o Zé Luís terá morrido. Estive hoje no hospital com ele, a vê-lo agonizar. Eu e o Boaventura, outro camarada, de pé ao lado da cama onde o Zé Luís está. Não conheci ninguém tão corajoso, tão bondoso. Em África tinha vinte e dois anos e era oficial de operações especiais. Não só corajoso e bondoso: de uma imensa generosidade, incapaz de dizer mal fosse de quem fosse, alegre no meio daquele horror, sensato, inteligente, bonito ainda por cima, humilde, recto, adorado pelos seus soldados, não, adorado e respeitado por todos nós. Debrucei-me para ele
– Zé Luís é o António
e os seus olhos a procurarem-me
– Meu querido
a sua voz, já difícil
– Amo-te, amo-te
de mão dada com o Boaventura, de mão dada comigo, com o seu corpo, outrora de estátua, desfeito, e o Boaventura e eu a disfarçarmos as lágrimas. Saí primeiro
– Não aguento mais
e fiquei no corredor à espera que o Boaventura viesse. Depois o elevador, depois a rua, e o Zé Luís lá ficou, a morrer, a morrer. É justo isto? Não, a sério, digam lá: é justo isto? O nosso amigo, o nosso irmão, que fez tanta coisa valente em Angola numa modéstia absoluta. Jamais se gabou fosse do que fosse, jamais lhe ouvimos um lamento, uma queixa. No cais, em Lisboa, um general qualquer discursou para as tropas que iam partir. Disse
– Vejo nos vossos olhos a alegria de irem servir a Pátria
e o Zé Luís, com ganas de lhe dar um tiro, a repetir baixinho
– Filho da puta, filho da puta.
Quando comandava o destacamento no Cessa os rapazes dele e ele já não tinham morteiros: o Zé Luís dispersou-os com very-lights, do outro lado do rio. Não foi só isto, fez mais coisas de uma valentia sem par e hoje, pelas frinchinhas dos olhos, a tentar sorrir
– Meu querido
e o Boaventura encostado à janela, com o seu rosto e os seus modos de príncipe, sabe Deus como por dentro. O soro a pingar. Nós a molharmos-lhe a boca seca, a vermos o seu corpo destruído. Dei-lhe o Santo António que me protegeu durante os meus cancros, pedi-lhe
– Não o deixe morrer
mas Santo António, por razões que só ele conhece e eu respeito, não decidiu assim. Zé Luís, Zé Luís, Zé Luís. A tua atenção, a tua paciência, a tua delicadeza, a tua doçura, o eco do teu riso. Já perdemos o Zé Jorge, que em certos aspectos se parecia contigo, e agora vais-te tu embora para sempre. Para sempre, meu amigo, meu irmão. O Boaventura e eu ali, desamparados, tão tristes. Isto de termos estado juntos muitos meses atrozes uniu-nos mais do que o sangue. Quando o soldado se matou na caserna, perto da fronteira com o Congo, tirou-se de lá o que liderava aquilo, todo borradinho de medo, e foste tu comandar. Aceitaste, como sempre, sem uma palavra de protesto. Estou a ver-te, de tronco nu, com a G3 ao longo do corpo, a assistir à nossa partida no unimogue, sabendo que tudo ficaria bem porque lá estavas. E, onde tu estavas, tudo ficava bem. Menos agora, Zé Luís, porque vais morrer, porque nos vais deixar sem ti. Estou zangado contigo, não aceito que nos faltes. Não aceito, percebes, não aceito. Não estou a escrever uma crónica, estou a descrever um vómito de dor e de espanto. Tu entendes. O Boaventura entende. Oiço os cães de África a ladrarem, oiço os batuques de quando saíamos para a mata, vejo os crocodilos do rio Cambo, só olhos à deriva, vejo o teu riso, oiço-te a dar ordens à tropa sem nunca levantares a voz. Para quê? Quem não te obedecia quando falavas?
– Vejo nos vossos olhos a alegria de irem servir a Pátria.
Não servimos Pátria nenhuma, servimos uma injustiça sem nome. E voltámos. E continuámos a viver. E agora a tua morte, o murro no meu focinho da tua morte, Zé Luís, a horrível crueldade do teu fim, Zé Luís. Meu Deus, como se pode ficar órfão de um amigo. Meu Deus que montinho de cinzas nos sentimos. Vais partir para onde, Zé Luís, para onde? A tua voz
– Meu querido
à medida que se afasta, a pavorosa impotência de não podermos fazer nada. Agora, a alinhar isto, continuo a sentir a tua mão na minha, a tua mão de homem, a tua mão de irmão. A tua forma de andar. As tuas frases. Que terrível não podermos fazer nada.
– Vejo nos vossos olhos a alegria de irem servir a Pátria
e tu
– Cabrão, cabrão
tu que tão poucas vezes dizias palavras dessas. E voltámos, lembras-te, voltámos. Andámos uns anitos por aí até hoje. E agora vamos principiar a coxear, coxear, pobres bonecos desarticulados e tristes. No automóvel do Boaventura ele e eu a afastarmo-nos do Hospital Pulido Valente, a afastarmo-nos de ti, sozinho numa dessas camas todas iguais, a morreres, a morreres. O Hemingway tinha razão, a morte é uma puta. O Boaventura deixou-me no hospital onde eu tinha de ir depois. Tanto sol entontecia-me. Estava cheio de ti, estávamos os dois cheios de ti. Eu para o Boaventura
– E agora?
A mudez dele foi a resposta mais comprida que alguma vez ouvi.
– Vejo nos vossos olhos
e, se o general reparasse bem, via nos nossos olhos o choro escondido que corria lá por dentro. Muito fundo para que mais ninguém desse por ele. Nem hão-de adivinhar com quanta angústia escrevi esta lágrima.