O toque a mortes no Mosteiro da Batalha, junto ao túmulo do Soldado Desconhecido, e a certeza que era também por mim que soava. Nunca ouvi nada tão bonito, tão dilacerante, tão profundamente triste, ecoando, até ao fundo do meu sangue, a dor do mundo. As salvas de tiros de quando o Ernesto, de quando o Zé morreram. Lembro-me de ver o Boaventura a chorar, lembro-me do sabor de uma lágrima minha e, no interior da lágrima, a canção acerca do falecimento de Sofia Rosa. Uma manada de elefantes a fugir do nosso aviãozito. Centenas de mandris na Pecagranja, horrivelmente humanos. Os crocodilos do Cambo, só olhos. De tempos a tempos tudo isto regressa e o milho do Ninda desata a murmurar. Acordo sem saber onde estou, com uma queimada no fundo da chana e alguém, que não vejo, a sossegar-me
– É só África, senhor doutor, é só África
é só a fronteira com a Zâmbia logo ali, é só África. Porque razão tudo isto continua a perseguir-me, não me deixa, me magoa? Toma nota destas papázinhas, me magoa. Horizontes infinitos, o soba Chiúme a coser à máquina, os Katangueses, de lenço vermelho ao pescoço, a matarem sem fim, o seu grito de
– Uhuru
e o oficial deles a comer um rato. Cabiris minúsculos a ladrarem. Tudo isto regressa, ou antes tudo isto não deixou de permanecer em mim. O pobre diabo do comandante cagado em frente do general. O capelão com galões de tenente, tão atrapalhado, tão civil. O major para ele
– Você, no dia em que se vier, afoga-nos a todos
isto numa gargalhada imensa e Sofia Rosa morreu. A canção
Quem morreu
Foi Sofia Rosa
Sofia
Uá uá.
Que lindo nome para uma mulher. No Kimbo de António Miúdo Catolo comíamos o funge da Domingas. Sindicato Caputo, filho do soba Caputo, convidou-me para padrinho do seu filho. Nome: Crítico. Se o meu pai se chamasse Sindicato eu provavelmente Crítico também.
– Como é que você se chama?
– Crítico
e aposto que gostava. Crítico. Acordo a meio da noite e se
– Como te chamas?
anunciava com orgulho
– Crítico
e casava com uma rapariga de nome Martelo, que era o que não faltava por ali. Os morcegos imensos das mangueiras. A estátua do deus Zumbi.
– Chama mosca, chama mosca
para o helicóptero dos feridos. A jiboia com metade de uma cabra dentro dela. O major para o capelão
– Ó capelão ao pé de mim segure-se
e o capelão todo agarradinho às partes a obedecer. De tempos a tempos, estou muito bem a dormir e aparece de roldão isto tudo. Há quanto tempo foi? Não: há quanto tempo é? O vento antes da chuva, o céu negro às quatro da tarde, dúzias de relâmpagos secos antes das cordas de água. Não são memórias tristes nem angustiadas, é uma zanga feroz. O túmulo majestoso do Zé do Telhado, perto de Dala-Samba. Foi um herói por ali, todo amor, todo bondade, como dizia João de Deus, o que as pessoas mudam. Os túmulos sagrados dos sobas antigos em montanhas a que arrancaram as árvores, deixando só um tufo de palmeiras lá em cima. Um dia vim-me embora. A minha mãe, espantada
– Não mudaste nada
e tem razão, senhora, não mudei nada, sou o mesmo, sinto-me óptimo. O que se passa às vezes, a meio da noite, não tem importância nenhuma, quem não sonha? O que se passa às vezes, a meio do dia, não tem importância nenhuma também, coisas que passam pela cabeça e se desvanecem em seguida. É apenas o toque a mortos no Mosteiro da Batalha, junto ao túmulo do Soldado Desconhecido que me incomoda. Há bocado, quando disse que era também por mim que tocavam estava a brincar. Como está farta de saber sou uma criatura divertida. E, já agora, não escuta o milho do Ninda a murmurar?