Conhecemo-nos na paragem do autocarro, quando me perguntou se por acaso eu não era o Carlos. Respondi-lhe que não, quase sem olhar para ela porque sou tímido, a olhar para cima, na esperança de ver o transporte fazer a curva dado que estava atrasado para o emprego. Como não havia nada a fazer a curva deitei-lhe o rabinho do olho: gorducha, de óculos, tinha um ar simpático, um saco de plástico com uma camisola ou assim, da loja dos chineses, lá dentro, e as unhas pintadas de roxo, com o verniz do mindinho a estalar. Baixinha. Não tenho nada contra as mulheres baixinhas, pelo contrário, também não sou alto. Ninguém na minha família é alto. Tive um primo alto mas infelizmente faleceu em abril, dos rins. Talvez os baixinhos não sofram tanto dos rins.
Dois ou três dias depois voltei a encontrá-la na paragem, sem saco de plástico da loja dos chineses e com o mesmo ar simpático. Perguntei-lhe
(de quando em quando esqueço-me da timidez)
se ela não era o Carlos. Riu-se e começou tudo assim, depois de eu me certificar que ela não usava aliança. Trazia um colar quase de pérolas e continuava gorducha. Morávamos perto um do outro e trabalhávamos perto um do outro também, ambos em companhias de seguros, ambos rodeados de papéis, ambos mal pagos, eu vivia com a minha madrinha porque os meus pais recusavam sair de Trás-os-Montes, ela com a mãe viúva, ambos em duas assoalhadas, ambos a dormirmos na sala, com um cão em casa, um Nero, o outro César, o que aumentava ainda mais as semelhanças, os dois a passarmos fins de semana compridos, enclausurados, porque a minha madrinha e a mãe dela nunca saíam e se queixavam de solidão e abandono
– Nem te ponho a vista em cima
de modo que gastávamos os fins de semana com a vista em cima delas, atentos às horas dos comprimidos e aos chazinhos de macela que acalmam os nervos, prestáveis, solícitos, interessados nos reumatismos das velhotas, a esfregarmos pomadas em articulações sofredoras, que nos deixavam as mãos peganhentas e os músculos dos braços exaustos. Acho que foi a Corina
(chamava-se Corina)
a ter a ideia de passearmos o Nero e o César ao mesmo tempo, de capa e trela no inverno, só de trela no verão, à mesma hora, dando voltas ao jardinzinho público que separava
(ou unia)
os nossos prédios e fomo-nos conhecendo melhor enquanto os bichos farejavam todos os pneus e troncos do bairro, feios, baixinhos e gorduchos como nós, farejando-se interminavelmente um ao outro também, coisa que a Corina e eu não fazíamos não por falta de vontade, por acanhamento, não digo que a farejarmo-nos o rabo, é evidente, mas podíamos, com discrição, farejarmos, sei lá, os pescoços, por exemplo, as nucas, as orelhas, e tirar alguma alegria dessas fungadelas mútuas, dado que os animais pareciam encontrar prazer nessa forma de contacto nasal. O perfume da Corina agradava-me embora não lhe mencionasse isso, o meu ainda hoje não sei mas, a partir de certa altura, não me perguntem como, demos por nós a caminhar de mão dada, ela a sorrir-me, eu aflito, da mão dada passámos à mão no ombro e, da mão no ombro, a um primeiro beijo rápido, a coberto de um arbusto, ela de olhos fechados como as actrizes no cinema, eu de olhos abertos a pensar
– E agora?
e o
– E agora?
foi simples, lento, natural, apesar dos cães puxarem as trelas, cada um para o seu lado, afastando-nos, de modo que nos beijávamos com um dos pés no ar, desequilibrados, até as trelas nos separarem, atraídas por pneus diferentes, a maldizermos os bichos. Um domingo a Corina sugeriu-me
– Porque é que a gente não
e calou-se envergonhada, comigo a imaginar o remédio das baratas na sopa da minha madrinha e da mãe dela, deitando parte na tigela da comida dos cães, desalugar uma das casas e juntarmo-nos na outra, sem reumatismos nem pomadas, ela e eu na sala, diante da televisão, ou mesmo no quarto, unindo-nos, com cerimónia e respeito, debaixo dos lençóis, tanto mais que a gordura dela, hesito em falar em intimidades destas mas uma vez não são vezes, tanto mais que a gordura dela me, se assim me posso exprimir, excitava, comigo de mão no bolso
(que difícil contar isto)
a tentar que a Corina não me visse a exaltação. Quando, passados tempos, ela repetiu
– Porque é que a gente não?
atrevo-me a perguntar
– Estava a pensar no remédio das baratas?
a Corina olhou-me num soslaio comprido, talvez com a união cerimoniosa, debaixo dos lençóis na ideia, puxou o cão com fúria num beijinho que me pareceu mais comprido e molhado que os anteriores, na semana seguinte o Nero e o César não passeavam connosco, arrastavam-se a babarem-se, a minha madrinha ficou-se como um passarinho, a mãe da Corina apareceu defunta junto ao rodapé, de perninhas curvas e olhar fixo, a Corina para mim
– Qual das duas casas prefere?
experimentámos a minha, experimentámos a dela, preferimos a sua porque a cova funda no colchão, derivado à gordura, proporcionava-nos uma união mais fácil, deitávamo-nos na borda e escorregávamos ao mesmo tempo para a depressão central onde os nossos membros se misturavam de imediato com a velocidade da queda, isto depois de largarmos o César e o Nero num contentor das redondezas, sem lhes tirarmos as trelas na hipótese de existirem pneus e troncos no céu e quem goste de puxar coleiras nos jardins
(sei lá como são as coisas lá em cima)
e fomos felizes durante uma semana até me parecer que a sopa tinha um gosto esquisito e um cheiro aparentado ao remédio das baratas, até lhe parecer que havia um sabor novo nas batatas do jantar, a Corina olhou para mim, eu olhei para a Corina, verificámos, ao mesmo tempo, que o remédio, até então a meio frasco, tinha desaparecido todo de modo que, antes de nos atirarem para um contentor do lixo, nos deitámos cada qual do seu lado no rebordo da cama de onde deslizámos, ao mesmo tempo, para o centro e nunca tivemos tanto prazer como antes da primeira cólica.