A minha avó, de quem eu gostava muito, morreu comigo em casa dela. Já era médico mas ainda não tinha ido à tropa e tentava tratá-la. Lembro-me da minha mãe a fazer-lhe festas nas mãos e na cara. Quando tudo acabou saí do prédio e fui a uma cervejaria próxima, chamada Prego de Oiro. Sentei-me num daqueles bancos altos do balcão, onde vários homens bebiam cerveja e comiam tremoços e pedi também uma cerveja e tremoços, para além de uma sanduíche de fiambre. Antes de me servir o empregado deu uma esfregadela no balcão com um pano e eu comecei a mastigar. Não pensava em nada. Juntamente com os outros fregueses estava ali o marido da irmã mais nova do meu pai, que era veterinário. Uns anos depois pedi-lhe para capar um gato que eu tinha, e ele mandou-me os testículos do gato dentro de um frasco, cujo rótulo dizia Pertencem ao dr. Lobo Antunes. Gostava dele. Por exemplo, antes de se ir embora explicava
– Para citar Alexandre Dumas estou farto
ou
– Como anunciava Victor Hugo boa noite a todos
e, para agradecer qualquer coisa, em lugar de
– Obrigado
desejava
– Deus nosso Senhor lhe dê saúde e boa sorte
e permanecia um momento a olhar para nós com um fervor triste. Era especialista em inseminação artificial de vacas e acompanhei-o muitas vezes aos domingos, a assistir àquilo. Havia um colega no consultório dele onde uma vez uma senhora apareceu com o canário doente e o colega pôs o termómetro debaixo da asa do canário. Embora fosse muito rico vestia-se à balda e nunca me aborreci com ele. Quando os meus irmãos e eu entrávamos, em matilha, na sala da minha outra avó, cumprimentava-nos sempre com a mesma saudação
– Ah cãzoada
e eu simpatizava com ele porque era diferente das outras pessoas e tinha paciência para mim. Enquanto comia a sanduíche no Prego de Oiro disse-lhe da morte e ele ficou que tempos a olhar-me atrás dos óculos, sem me tocar, com uma expressão que cheirava a abraço. Depois, com um sinal dos dedos, mandou que me trouxessem uma segunda cerveja. Jantei várias ocasiões em sua casa por ser uma das raras pessoas que conheci cujo silêncio era confortável. Nunca o vi zangado, e também nunca tinha visto a minha mãe fazer festas na mãe dela. Nem na mãe dela nem em ninguém, seca como um carapau. Agora está mal, bastante mal: nós, a cãzoada, andamos um bocado à brocha com aquilo. Até sou terno para ela, palavra de honra, e sinto que a minha família está a desfazer-se. Preciso de encontrar com urgência o frasco onde o marido da minha tia mais nova me meteu os testículos, dois penduricalhos a flutuarem no que supus ser álcool um bocadinho escuro. Recordo-me que o gato castrado engordou como um sultão. A cervejaria Prego de Oiro já não existe, com a sua alcatifa de cascas de tremoços e os clientes a falarem de bola e de gajas:
– Comeste-a, ao menos?
– Está quase
duas ou três semanas depois
– Já comi
umas palmadas nas costas para festejar
– Grande Domingos!
e festejar também o Benfica ter amandado três nuns paralíticos, segundo um sportinguista invejoso, que teimava
– Até de cadeira de rodas se ganha a esses artolas
convicto mas um bocado a medo porque a equipa do Benfica estava toda encaixichada na parede, incluindo um médio chamado Alfredo, de alcunha o Três Pés, dois para jogar e o terceiro destinado a bater no osso. Dizem que entrava em campo numa jaula e o sportinguista, só de pensar que o Alfredo podia atravessar o vidro, encolhia-se como um bicho da conta. Era tão terrível que ainda sei o nome inteiro dele, Alfredo Abrantes Abreu e nunca assisti a um jogo do Alfredo porque não varreram cadáveres no fim. Só o grande Domingos, que comeu a gaja, se permitia olhá-lo de igual para igual. Mas informou a rapaziada que a gaja comida tinha uma irmã que aconselhou em torno, inclusive a mim, com o melhor elogio que se pode fazer a uma mulher
– Dá ares de aquecer como um chá
enquanto um murmúrio esperançado percorria as cervejas. Portanto o dia da morte da minha avó foi cheio de emoções, comigo dividido entre a tristeza e o desejo, que a vida é assim mesmo: a minha mãe às festinhas à mãe dela e a rapaziada em ebulição. O Domingos, depois dos pêsames, animou-me
– Aqui o doutorinho é que era homem para ela, sempre todo pinoca
e o marido da minha tia mais nova foi suficientemente discreto para não mencionar os meus testículos no frasco. Ainda lhe estou grato por isso. Hei-de recuperá-los um dia porque nalguma gaveta hão-de estar. E então, todo armado, posso procurá-la nos bailes do Fójó
– Quer dançar?
com o Domingos, ao longe, a comprimir as palmas uma contra a outra na minha direção
– Aperte com ela, doutorinho
isto passado um mês de luto para não ofender ninguém, que há regras para tudo. Chamava-se Natércia e nunca mais a vi. Aliás não tinha direito àquilo. Primeiro por ser um bocado gorda e depois porque, comparado com o Três Pés, por exemplo, quem era eu? A juntar a isso dali a nada entrava na tropa e lá se me ia o cabelo. O funeral da minha avó teve bastante gente se incluirmos a cãzoada. Ainda chorei umas lágrimas e não me sentia inclinado a abraçar uma gorda e agradecer no fim
– Deus nosso Senhor lhe dê saúde e boa sorte
embora ela queixosa de a ter pisado uma porção de vezes. Para citar Alexandre Dumas não me apetecia.