Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram. E assim o Ernesto e eu voltamos a estar juntos em Santa Margarida, em África, em Lisboa, em Sintra, torna a emprestar-me a chave do apartamento em Paris, na rua Saint Dominique, no qual me enfiava umas temporadas a escrever e a fazer maldades, invejoso da estante cheia de livros da Pleiade e passeando sob os castanheiros dos Inválidos durante o verão indiano. De modo que eis-nos juntos outra vez, entre silêncios, aberturas indianas do rei e longas conversas em que ele falava muito mais do que eu, àcerca de literatura, filosofia, política. Ou seja eu falava pouco
(sempre falei pouco)
não discuto nunca, quando não estou de acordo calo-me. Se estou de acordo calo-me também. Admirava-lhe a coragem, a profunda rectidão, a honestidade. As suas ideias mantiveram-se as mesmas desde a guerra, numa fidelidade de princípios que me agradava, eu que não tenho ideias, tenho iluminações, não racionalizo, encontro. As nossas diferenças uniam-nos. Ele queria mudar a sociedade; eu, mais modesto, apenas queria mudar o mundo. Com uma caneta. E depois, ainda que não o confessássemos, vivíamos ambos mortalmente feridos de compaixão e ternura, muito bem disfarçadas, claro. Achávamos nós que muito bem disfarçadas. Já doente, por exemplo, preocupava-se imenso com uma operaçãozita de cacaracá que me tinham feito à língua. A delicadeza da sua solicitude era sempre elegante. Isto também admirava nele: a elegância, o pudor, a paixão da amizade, não mencionando o facto de ter sido sempre implacável com a ausência de carácter, a mentira, a cobardia. Um homem profundamente bondoso e, em boa parte por culpa sua, frequentemente mal entendido. Não vou, por respeito ao seu pudor, mencionar coisas íntimas, olha, vou mencionar uma, possuía uma grande capacidade de tolerância e um genuíno amor aos homens que a postura severa e a austeridade dos seus modos ocultavam. O Ernesto foi sempre uma pessoa justa eu que lia a palavra desde menino, justo, e só a compreendi totalmente à medida que o fui conhecendo. Postura severa: desfez-se inteira uma tarde, ao propor-me
– Vamos a Tavira?
e, após uma longa pausa
– Fui feliz lá, na infância.
E fomos a Tavira, ele, eu e o menino que de repente saltou do Ernesto e nos passeou na cidade no entusiasmo das lágrimas contentes, com o Ernesto a tentar calá-lo numa pressa envergonhada
– Desculpa
embora quanto mais o camuflasse maior ele aumentava de tamanho, quanto mais o cegasse no interior dos óculos mais ele via, o Ernesto
– Desculpa
aflito com a criança que morava nele, aliviando um pouco a dor de profundas raízes de um homem atormentado pelos seus demónios secretos. Diziam-no esquivo e fechado: sempre achei o contrário. Bastava olhar. O doutor João das Regras dirigindo-se ao povo de Lisboa:
– Olhai, olhai bem mas vêde.
Isto no génio de Fernão Lopes, claro. Bastava ver. Eu para o Ernesto
– Tavira é mais bonito que Paris, não é?
e o cigarro a responder por ele
– É.
E é de facto: onde nos sentimos felizes é a nossa terra natal. E notei então que para aquele sujeito, ao contrário do que sucede à maior parte das criaturas, o amor era mais do que prazeres breves e localizados. Trinta anos de amizade sem uma única mancha. Ao contrário também do que muitos supõem o Ernesto não era um civil fardado: era profundamente militar no sentido em que o meu avô o foi até à morte e se orgulhava disso: no sentido da servidão, da camaradagem e do orgulho. Sempre me irritou ouvir falar mal da tropa: a melhor recompensa que recebi na vida consiste no amor dos meus soldados, na estima dos oficiais com quem privei. Em Angola, o Melo Antunes era adorado e respeitado. Pela sua autoridade natural, pela sua alma generosa e, perdoem-me a má criação, pelos seus colhões. Ao chegarmos ao Ninda, um lugar horrível, preveniu-me
– Pendura a pila na arrecadação mas guarda os colhões
Espero tê-los guardado, não estou certo, mas ele conservou os seus. Escutei diversas vezes
– O nosso capitão tem-nos no sítio
e toda a vida os teve no sítio. Na doença, cujo fim ele sabia, nenhuma queixa, nenhum lamento, nenhuma revolta: sofreu imenso com uma dignidade absoluta. Acompanhou-me, já enfraquecidíssimo, ao enterro do meu muito querido José Cardoso Pires. Ao sairmos do cemitério um senhor importante perguntou-lhe
– Como vai, meu caro Melo Antunes?
e ele, que se amparava ao meu braço, largou-me, dilatou-se dois metros e respondeu num sorriso
– De vento em popa.
Um único comentário para mim, ao amparar-se de novo ao meu braço
– Venho de sepultar um amigo e pergunta-me como é que estou?
E assim fomos até ao automóvel: de vento em popa. Conforme eu, ao acabar este texto, sabendo que vou tornar a perdê-lo. Mas há-de existir por aí um braço e, tornando-se necessário, dilato-me dois metros. Não: dois metros dilatou-se o capitão. Dilato-me meio metro
– De vento em popa
porque sei que ele me há-de amparar.