Ah, o Natal! Aquela época do ano cheia de afetos, proximidade, família e fatias doiradas, com cheiro a lareira, crianças em correria, uma gloriosa árvore decorada com os enfeites mais cintilantes e dez metros quadrados de presentes em redor – lamento advertir que as semelhanças entre este Natal dos filmes e a realidade será uma grande coincidência, disfarçada em esforço pelo barulho das luzes. Muitas vezes é uma questão de expetativas: sofre-se de picos de stress agudo no trânsito de dezembro; de intensa ansiedade financeira face à pressão de consumo ofertante e a impossibilidade do milagre da multiplicação dos presentes (ou dos euros); tenta-se a perfeição, só para a noite de consoada iluminar a nossa síndrome de impostor da quadra; e com o bacalhau servem-se batatas cozidas e desencontros familiares. Outras vezes, não há expetativas, consumidas pela depressão antecipatória, pelas ausências, pela mesa modesta. E noutras, somos só nós e os nossos fantasmas dos Natais passados, presentes e futuros, solitários – rodeados de gente ou sozinhos. Nestes tempos de “epidemia de solidão”, classificação da OMS, o Natal acentua um problema dramático de saúde social, que impacta profundamente na nossa saúde mental: a desconexão. Os Christmas Blues são temporários, o trânsito acalma, entra o novo ano mas a solidão, o isolamento social e a desconexão perduram. Como ninguém pediu ao Pai Natal as fórmulas de conexão, o brinde (ou a fava) deste bolo-rei é claro: como tirar o nariz dos ecrãs de uns, fazer outros sair da sua cabeça e/ou de casa, consolidar a empatia e (res)tabelecer laços? Porque até o Scrooge sabe que não há inteligência natural e saúde mental sem conexão, comunidade e pertença. Tudo o que não queremos no Natal é solidão – nem no resto do ano.
Um problema 365 dias ao ano
16% da população mundial experimentou solidão: 1 em cada 6 pessoas, 1,32 milhões de terráqueos, de todas as idades e geografias, com destaque para os adolescentes (20,9%) e jovens adultos (17,45), passam por esta experiência subjetiva e angustiante que vem do isolamento percecionado ou de ligações reais insuficientes. Não é uma questão quantitativa, mas de qualidade das conexões e da perceção que se tem delas: podemos senti-la numa mesa de Natal cheia de pessoas, ou não sentir solidão alguma num Natal a três, dois, um. O isolamento social é outra coisa, objetiva, que mede a regularidade das interações das pessoas. As estimativas da OMS confirmam a sua preponderância nos mais velhos (34%) afetando 1 em cada 4 idosos e, ainda assim, 1 em cada 3 adolescentes.
Sendo distintos fenómenos, têm denominador comum. Estamos a degradar as ligações retirando-lhes o seu vital significado, e esta desconexão toda sai-nos cara em saúde: perto de 1 milhão de mortes por ano (871 mil), aumento significativo de morte prematura, dos enfartes, AVCs, hipertensão, obesidade e diabetes tipo 2. E a saúde mental? A ligação à depressão e ansiedade é direta: 81% das pessoas que experienciam solidão têm sintomas ou depressão e ansiedade instaladas; a solidão aumenta significativamente o risco de demências e declínio cognitivo, de ideação e morte por suicídio, de mal-estar psicológico. E saiu cara às finanças globais: algures entre 200 e 400 mil milhões anuais, em custos acrescidos para os sistemas de saúde e em perdas de produtividade e inovação para a economia. Até as empresas recebem fatura a pronto pagamento: só nos EUA, são 3,5 mil milhões em custos de produtividade e turnover. Não sobra grande coisa para os presentes.
Quais são as causas desta epidemia de solidão “declarada” pela OMS? Ainda sem revisão científica, é de intuição simples: digitalização, (re)estrutura social e descompasso evolucionário – os humanos evoluíram com e através de fortes ligações comunitárias, pelo que o isolamento é perigoso e o individualismo é fator de risco.
A intensificação natalícia
O Natal é a época mais solitária do ano para muita gente. Porque nos é imposta a comparação, vendida a perfeição, e o confronto com a realidade é emocionalmente angustiante. O impacto natalício na saúde mental é significativo: 75% das pessoas passam por sentimentos de tristeza e insatisfação; 68% sentem pressão financeira; 66% solidão; 63% experimentam ansiedade esmagadora; 55% nostalgia debilitante (National Alliance on Mental Health, USA). É, também, penoso para quem está socialmente isolado: estimativas indicam que 10% da população ocidental cristã passa o Natal sozinha. Portanto, as Festas têm contraindicações na bula: piora a saúde mental de quem a tem, agrava-se a doença mental diagnosticada. Entre nós, diz-nos a Ordem dos Psicólogos Portugueses que o Natal agrava os sintomas de 64% dos doentes: 24% pioram muito, 40% pioram parcialmente. As urgências psiquiátricas aumentam logo após o Natal, sobretudo em quadros depressivos.
Soluções no sapatinho
Fazer pedidos ao Pai Natal por bom comportamento, já não funciona. A solidão extravasa o seu pelouro temporal ano afora, e não tem ajudantes que cheguem para responder à dimensão do problema. As receitas são óbvias, mas a concretização nem tanto. São de esforço coletivo: os médicos têm de saber diagnosticar, fazer análise de impacto e abusar da prescrição social de atividades comunitárias; os decisores políticos têm de criar espaços públicos e políticas setoriais que estimulem a interação – e, já agora, regular o espaço digital, que pode facilitar e não substituir as ligações reais. Mas no curto prazo, depende muito da nossa vontade e comunidade. Para resolver a solidão natalícia, gerir expetativas, fazer voluntariado, assumir que são apenas algumas horas do calendário. E até ao Natal de 2026, aprender que a solidão e isolamento nos são contranatura: somos bichos de tribo, precisamos uns dos outros para a evolução e a vida. De presentes e filhoses, nem por isso.
Eu não gosto do Natal. Sou ateia, pragmática, pouco dada a teatro social, e os custos emocionais, mentais e consumistas de tudo isto não (me) fazem sentido. Mas façam fé em mim, de saúde mental eu percebo alguma coisa.
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