2,5 mil milhões de trabalhadores sofreram um burnout no atual emprego. São 75 a 77% da força de trabalho mundial, e os números incendiários são de janeiro de 2023. Em Portugal, classificado como o país europeu com maior risco de burnout ocupacional pela Organização Mundial de Saúde, 50% dos trabalhadores já entraram em combustão mental – 2,5 milhões de pessoas, 26% da população nacional. O burnout ocupacional – que não é considerado uma doença, mas que a OMS classifica como síndrome desde 2022 – foi exacerbado pela pandemia mas é pré-pandémico, está associado a cerca de 1 milhão de mortes anuais, custa milhares de milhões a empresas e Estados, deu origem à Great Resignation de 2021 e junta-se incendiariamente à crise de saúde mental global para dar transparência ao óbvio: a forma como trabalhamos é insustentável.
O que é? Uma “síndrome resultante de stress laboral crónico que não foi gerido com sucesso”, caracterizada por 3 dimensões: a exaustão emocional e física, a despersonalização do trabalho e a redução da eficácia profissional – é assim que a OMS define o burnout (especificamente) ocupacional no seu Classificador Internacional de Doenças, CID-11. A evolução do diagnóstico é notória, passa de “estado de exaustão vital” a síndrome (v.g. uma coleção de sinais e sintomas)– sendo que o DSM-5 norte-americano continua a ignorar o burnout. Digam os critérios de diagnóstico o que disserem, é óbvio que estamos perante um problema de saúde pública mental épico – e se isso não é doença, o que merecerá a nomeação?
Os sintomas são muitos e afetivos, físicos, cognitivos, alterações comportamentais e uma paupérrima relação com o nosso trabalho. O catálogo é vasto e aberto: tristeza, irritabilidade, apatia, frustração, descontrolo emocional, fúria, insónia, fadiga, hipertensão, problemas gastrointestinais e cutâneos, dores musculares, déficit de atenção, concentração e memória, perda de autoconfiança e autoestima, agressividade, isolamento social, adições de álcool, drogas ou jogo, desmotivação, empenho e eficácia profissional reduzidos. Mais importante que os efeitos são as causas deste arder em lume profissional brando, os riscos psicossociais: fatores ligados à conceção, organização e gestão do trabalho, que se cruzam com o contexto social, ambiental e pessoal do trabalhador, e que, no século XXI, são dominados pela pressão psicológica e perturbações de saúde mental no trabalho.
Sendo uma epidemia – ou já pandemia – contemporânea, o burnout é, pelo menos, quarentão. Surge na literatura clínica em 1969, designando o estado do staff de um centro de reabilitação do Sul da Califórnia, e a paternidade conceptual é atribuída ao psicólogo nova-iorquino Herbert Freudenberger que, em 1974, e após um ano em turno duplo no seu consultório e na St. Mark’s Free Clinic, se autodiagnosticou. Imagina-se que a expressão venha dos heroinómanos da East Village: injetando-se continuamente na mesma veia, esta torna-se inútil, “burned out”. A pertinência mantém-se, somos viciados em (mau) trabalho.
Impacto. O trabalho consome-nos quase metade da vida. Os europeus trabalham em média 37 anos, e nós 38 anos – são 13870 dias, 332880 horas e, sendo a esperança média de vida 81 anos, 47% do nosso tempo terrestre. Que passamos em organizações e trabalhos pouco saudáveis.
Sem estratégia, a saúde mental ocupacional foi sendo terra de ninguém onde imperou a lógica da mente queimada: arder até ao fim, substituir o trabalhador. Perante o fósforo coletivo incinerado, se não a racionalidade económica e a humanidade, as exigências do mercado e a qualificação do trabalho impõem uma revolução na saúde mental ocupacional. É que este fósforo é muito grande. E o incêndio, num ambiente laboral sem extintores e cheio de pirómanos, é avassalador.
Desde 2020, 37% dos trabalhadores estão a dedicar mais horas ao trabalho, para lá do habitual; 61% dos trabalhadores remotos e 53% on-site têm dificuldade em desligar pós-expediente; 25% dos empregados não usaram todos os dias de férias. As lideranças não dão pelo fumo, com 53% dos gestores incapazes de detetar problemas de saúde mental nos membros das sus equipas, e 51% cegos ao excesso de trabalho ou burnout dos colaboradores. E a promoção, prevenção e resposta das empresas à saúde mental ocupacional é feita com camiões-cisterna do século XIX: no universo de trabalhadores que sofreu burnout, 70% sente que o empregador nada fez ou deu atenção insuficiente, e só 21% tive uma resposta aberta e dialogante dos Recursos Humanos. E assim, o fósforo queima: os dias por doença tornam-se 63% mais prováveis, e muitos fogem do fogo, deixando o emprego: 75% dos Gen Z, 50% dos millennials, 30% dos baby boomers.
Em Portugal, as labaredas chamuscam mais ainda. Estamos nos tops da combustão mental, sendo o país da UE onde os trabalhadores têm maior risco e sofrem mais burnouts, reportando o maior número de problemas de saúde mental no trabalho. Porquê? Porque somos dos piores da UE: 6ºs piores no equilíbrio trabalho-vida pessoal, 2.ºs no World Happiness Index; temos o 3.º pior salário médio e trabalhamos 39,4 horas semanais (4.º pior resultado).
Como a prevenção é miragem, queima-se também dinheiro. Cá, os custos do absentismo e presentismo resultam em perdas de produtividade de 3.2 mil milhões de euros anuais para as empresas (1% do seu volume de negócios) – segundo a Ordem dos Psicólogos, que estima que a prevenção e promoção da saúde mental ocupacional reduziria estes custos em 30 por cento. Globalmente, ninguém apresenta cálculos diretos – sabe-se “apenas” que a depressão e a ansiedade importam anualmente 12 mil milhões de dias de trabalho e 1 bilião de euros perdidos. Quando já impera o carvão, tudo é mais difícil. Investir em alarmes de fumo não chega, é preciso remediar o estrago e replantar.
Nos idos de 2007, quando tive o meu primeiro burnout ocupacional, chamava-se-lhe “esgotamento”, era físico e diagnosticado pelo mais geral dos clínicos e tratado a vitaminas e repouso. Era um não assunto e só vitimava workaholics – culpa do doente, portanto. O que aconteceu? Depois da baixa para repouso, mudei de trabalho. Dez anos depois, juntei um segundo burnout à coleção – não sei quem foi o ovo e a galinha, mas seguiu-se a minha última crise de depressão major. Apesar do acompanhamento especializado, ninguém lhe chamou burnout, contextualizou como fenómeno ocupacional ou foi além dos clássicos antidepressivos e ansiolíticos. Foi há 5 anos.
A pandemia impediu-nos de continuar à espera que o fumo fosse apenas nevoeiro e não incêndio de universais proporções. Em 2023, se outra linguagem não prevalecer, que a racionalidade económica impere: deixar arder a saúde mental dos colaboradores é de custo exorbitante, num contexto geracional de revisão de prioridades existenciais. Os millennials já pouco estão para workplaces pouco saudáveis, os zoomers não equacionam consumir 47% da vida a trabalhar em organizações que lhes queimam a sanidade mental. O novo paradigma da saúde mental ocupacional? Somos todos, pessoas singulares e coletivas, agentes de saúde mental. Porque o sucesso profissional competitivo a tempo integral já não é o índice que comanda a vida.
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