Há alguns anos, a estrela portuguesa de futebol Luís Figo sofreu danos reputacionais, com a sua associação a uma operação de propaganda de José Sócrates. Armando Diego Maradona, por seu turno, apareceu ao lado do “compadre” Fidel Castro e nunca escondeu a sua simpatia por El Comandante, sem que a estrela do argentino tivesse dado mostras de empalidecer. Claro que, em ambos os casos, os futebolistas citados já tinham arrumado as botas e estavam, assim, menos expostos e a salvo de vaias ou polémicas, sobretudo, na representação nacional ao serviço de cada uma das suas seleções. Política e futebol confundem-se nas “brumas da memória” desde que o desporto-rei é um espetáculo de massas, que mexe com as emoções e com o dinheiro. Num interessante, divertido e altamente recomendável livrinho, publicado pela Tinta da China, em 2016, Para Lá do Relvado – O que Podemos Aprender com o Futebol, Raquel Vaz Pinto dá múltiplos exemplos de como o pontapé na bola foi usado em narrativas políticas.
A polémica nacional – e, talvez, internacional – relacionada com o convite/visita de Cristiano Ronaldo à Casa Branca, depois de, dias antes, cirurgicamente, ter manifestado a sua admiração por Donald Trump, é como todas as polémicas ligadas ao futebol: um manifesto exagero, exacerbado por fatores emocionais que nada têm a ver com a realidade das coisas. A importância dada a este evento teve de tudo: haters de Ronaldo que viram confirmada a sua aversão, fãs de Donald Trump que viram legitimada a sua admiração, novos haters para o primeiro, saídos das fileiras de anteriores incondicionais, e até novos admiradores do segundo que, se antes o viam com maus olhos, agora apreciaram a sua “humanização”. O nosso CR7 esteve numa plateia de poderosos barra milionários, com nomes como Jeff Bezos e Elon Musk, juntamente com Donald Trump e Mohammed bin Salman. De referir que a Arábia Saudita anunciou o investimento de mil milhões de dólares em projetos nos EUA, ao mesmo tempo que confirma parcerias em Inteligência Artificial, tecnologia e defesa, com implicações diretas na geopolítica do Médio Oriente. Não esquecer, neste contexto, o Projeto Prometheus, de Bezos, que pode transformar a capital saudita, Riade, num centro mundial de IA. No meio disto tudo, o peão Cristiano Ronaldo é um influencer de luxo, uma flor na lapela do príncipe saudita.
Vale a pena, neste ponto, portanto, debruçarmo-nos sobre um argumento muito utilizado pelos defensores de Cristiano Ronaldo, não porque ele tenha fundamento, mas porque foi brandido por figuras com a responsabilidade do selecionador nacional, Roberto Martínez, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Segundo esta narrativa, a presença de Ronaldo na Casa Branca, naquela intimidade com o homem alegadamente mais poderoso do mundo, deve encher-nos de orgulho, porque o Cristiano “é o melhor dos nossos embaixadores”. Além do provincianismo do argumento, podemos tolerar, compreender (e o autor destas linhas compreende) defender ou até admirar a façanha da presença de Ronaldo, como convidado de luxo de Trump. Mas não por estes motivos. Nem o selecionador nem o PR ignoram, porque o próprio Ronaldo não o escondeu, que a ida do jogador para o campeonato saudita incluiu nas suas atribuições a função de embaixador da candidatura da Arábia Saudita à organização do Campeonato do Mundo de Futebol de 2034. É legítimo: Ronaldo é pago para isso. E não vale a pena vir o choradinho dos direitos humanos espezinhados na Arábia Saudita e a alegada conivência do astro português com um regime supostamente assassino: ele não é a Madre Teresa, nem é um ativista, nem é obrigado a sê-lo. Ele é um profissional, bem acompanhado por outros profissionais congéneres que encontraram naquele país um emprego e um futuro – a começar por muitos jogadores e vários treinadores portugueses. Ele, sendo muito mais do que um jogador de futebol, na essência é só um jogador de futebol. Mas dizer que Ronaldo, nesta missão específica em Washington, foi nosso “embaixador”, é fazer de nós estúpidos e pretender que engulamos uma pílula de coliformes fecais com cobertura de açúcar. Em primeiro lugar, se um “embaixador de Portugal” está incluído numa comitiva saudita, é o País, e neste caso, o Presidente da República – que reconhece a Cristiano esse estatuto diplomático… – que está a pactuar com o regime sanguinário da Arábia Saudita. Não é Cristiano que está a fazê-lo. A natureza da “missão diplomática” não compromete o embaixador, pessoalmente: ela compromete o país que representa e que o legitima. Será que os portugueses acham bem ter um embaixador seu ao serviço de interesses sauditas?… E compromete, especificamente, o Presidente da República, na sua associação indesejável com o regime árabe. Que nós consideremos Cristiano um embaixador informal, tudo bem: é uma maneira de dizer. Mas que seja o PR a dar-lhe esse estatuto, nesta história concreta, é uma leviandade. Ou será que Cristiano foi discutir com Trump um regime de tarifas mais favoráveis para as empresas portuguesas?… Embaixador do quê? Em segundo lugar, se o impacto global de Cristiano sempre nos orgulhou, esta viagem em concreto orgulha os portugueses ou, pelo contrário, envergonha o País? As opiniões dividem-se: uns dirão que é um orgulho. Outros, que é uma vergonha. Ora, esta inevitável polarização enfraquece a qualidade diplomática.
E, no entanto, qualquer modificação na maneira como cada um de nós olha para Cristiano Ronaldo será sempre exagerada, se ela for afetada pelas imagens que todos vimos. O que devíamos querer saber de Ronaldo? Se marca golos ou não marca. E sempre marcou. Se joga bem ou não joga. Sempre jogou bem. Se orgulha o País e os seus fãs no campo ou se não orgulha. Sempre orgulhou. Se usa parte da sua influência para auxiliar os mais desfavorecidos ou não usa. E sempre usou. Se vai ou não vai honrar-nos, durante anos ou séculos, muito para lá do fim da sua carreira… E vai! Sinceramente, as suas opiniões políticas contam pouco. Se ele gosta de Trump – ou foi aconselhado a gostar, por razões “operacionais” – é um bocado indiferente e é lá com ele. O CR7 será sempre o CR7, e vai ser recordado pelas suas prestações em campo, não pelas suas atividades fora dele. “Embaixador”, sem dúvida, sempre que não estiver a servir interesses estranhos ao País, ou contraproducentes para a reputação do País – como foi o caso. Foi o caso, mas tem todo o direito de o fazer, porque Cristiano Ronaldo, sendo “património” dos portugueses, não é propriedade deles. Cristiano Ronaldo não esteve, em Washington, a representar o País. Nem tinha de estar. Ninguém lhe passou essa procuração.
Há outras razões, essas, sim, mais importantes, para que Cristiano Ronaldo reflita. No passado dia 16, uma espécie de 25 de Abril varreu a Seleção Nacional. A alegria exibicional dos jogadores e as suas celebrações posteriores, nas redes sociais, após o 9-1 à Arménia, sem o capitão em campo, foram aspetos reveladores de uma Seleção que já se emancipou. Na marcação de um livre direto, o dono da bola seria sempre Bruno Fernandes, capitão de equipa por ausência do CR7. Mas, numa deliberada mensagem, talvez para vincar uma posição, o jogador do Manchester United concedeu ao benjamim da equipa, João Neves, a marcação da falta, a uns 30 metros da baliza adversária. A decisão de Bruno Fernandes não terá sido tomada por acaso: ele mostrou que se pode passar o testemunho. E revelou uma atitude que nunca viu Cristiano ter para com ele. (E, agora, João Neves verá em Bruno, e não em Cristiano, eternamente, o seu “capitão”). A moral da história escreveu-se sozinha: desde 2018 que não havia memória de a Equipa das Quinas ter marcado um golo como aquele.