Em Portugal, a violência doméstica continua a fazer vítimas todos os anos. Apesar das campanhas de sensibilização e das reformas legislativas, os números teimam em não descer significativamente. A questão, porém, não está apenas na lei — está, sobretudo, na forma como o sistema responde aos pedidos de ajuda. A sobrecarga de processos e a incapacidade de resposta dos profissionais que atuam nesta área tornam quase “inevitável” que haja falhas graves. E essas falhas, infelizmente, podem custar vidas.
Quem acompanha de perto esta realidade — sejam vítimas, técnicos, juristas ou associações — sabe que o sistema está saturado. Os tribunais e as forças de segurança lidam com milhares de processos por ano, sem meios humanos e materiais para dar resposta com a urgência e o cuidado que a violência doméstica exige.
Com forma de combater este flagelo, a Procuradoria Geral da República no ano de 2019, no âmbito dos Departamentos de Investigação e Ação Penal Regionais, Lisboa, Sintra, Seixal e Porto procedeu à criação de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), compostas por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC).
Estas secções visam proporcionar uma resposta judicial mais célere, eficaz e centrada na vítima, integrando magistrados, polícias e técnicos de apoio. No entanto, a eficácia destas estruturas enfrenta desafios significativos, especialmente relacionados com a escassez de magistrados e outros profissionais judiciais, concretamente funcionários.
Seja nas SEVID ou em qualquer Tribunal, a falta de magistrados e oficiais de justiça compromete a capacidade institucional para lidar com ausências prolongadas, como baixas médicas ou licenças parentais, sobrecarregando os restantes profissionais e afetando a gestão eficiente dos processos.
O número de processos de violência doméstica não para de crescer, mas o número de procuradores e funcionários judiciais não acompanha esse aumento. O resultado é um sistema que já não consegue responder à altura.
A legislação portuguesa reconhece a gravidade da violência doméstica, atribuindo natureza urgente aos processos relacionados com este crime. De acordo com o artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, mesmo que não haja arguidos presos. Esta urgência implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal, que determina que os atos processuais sejam praticados durante as férias judiciais, sem suspensão de prazos.
No entanto, a realidade nos tribunais portugueses revela um cenário preocupante: processos classificados como urgentes — que deviam ser resolvidos em dias — arrastam-se durante semanas ou até meses; medidas de coação são adiadas, audições proteladas, e vítimas deixadas à sua sorte, muitas vezes ainda a conviver com os agressores.
A falta de magistrados tem consequências gravíssimas.
Os Magistrados do Ministério Público são forçados a acumular dezenas de processos complexos, o que reduz a possibilidade de análise atenta de cada caso, trabalhando sob pressão constante, num ambiente de exaustão que pode conduzir ao erro.
Como garantir justiça célere e humana se quem a aplica está a trabalhar no limite?
É impossível garantir justiça eficaz com tribunais a funcionar no limite das suas capacidades. E é ainda mais inaceitável que isso aconteça precisamente nos casos em que a urgência é vital. O sistema deveria ser uma rede de segurança para as vítimas. Em vez disso, muitas vezes transforma-se num novo campo de angústia e espera.
O Estado precisa de agir com responsabilidade. É urgente reforçar os quadros de magistrados, de funcionários, e investir em formação especializada para todos.
Embora Portugal tenha avançado na legislação de combate à violência doméstica, a eficácia das Secções Especializadas Integradas e de todas as secções a nível nacional que tramitam processo de violência doméstica depende diretamente do investimento em recursos humanos. Sem esse compromisso, as vítimas continuarão a enfrentar obstáculos no acesso à justiça e à proteção que merecem.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.