“A utilização do sistema judicial como arma para silenciar as mulheres alimenta a impunidade”. A frase não é minha, faz parte de uma das conclusões de um relatório das Nações Unidas elaborado após o surgimento global do movimento #MeToo. Naquilo que o mesmo documento descreve como uma “reviravolta perversa”, deixa para reflexão a forma como “as mulheres que denunciam publicamente alegados perpetradores de violência sexual estão cada vez mais sujeitas a processos por difamação ou acusadas de calúnia ou falsa denúncia”. Pernicioso, mas cada vez mais comum.
Voltei a este documento ontem, o mesmo dia em que as vítimas do CES foram levadas a tribunal. Não na sequência do relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que confirma ao longo de 114 páginas a existência de padrões de conduta de abuso de poder e assédio alavancados por uma hierarquia que o facilitava, totalizando um somatório de 32 denúncias. Mas sim enquanto arguidas num processo de proteção de bom-nome e honra de Boaventura Sousa Santos, que, trocado por miúdos, se diz difamado pela carta pública que um coletivo de 13 investigadoras publicou, exigindo a sua suspensão pelos alegados atos e conduta abusivos.
Em jeito de lembrete, dizia o dito relatório da Comissão Independente que “várias pessoas denunciantes descrevem, quer na qualidade de denunciantes, quer na qualidade de testemunhas, as mesmas situações e/ou situações semelhantes de assédio moral, sexual e abuso de poder”. Comportamentos de abuso sexual relatados? “Toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais; abraços demasiado longos e apertados”, “relações sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar consentimento livre e esclarecido” e ainda “relações sexuais com alunas/investigadoras cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam”. “Contactos em horas impróprias (por vezes durante a madrugada) para tratar de assuntos não urgentes e, por vezes, para satisfação de necessidades e caprichos pessoais”. A lista continua muito para além disto. Porém, nenhum nome em concreto foi escrito.
Não deixa de ser irónico que sejam as alegadas vítimas a chegarem primeiro a julgamento, agora como alegadas difamadoras.
Não deixa de ser irónico que sejam as alegadas vítimas a chegarem primeiro a julgamento, agora como alegadas difamadoras. Ou sintomático da estratégia de ‘lawfare’ em que tantas vítimas se veem envolvidas mundo fora, quando ousam denunciar situações de abuso e violência, principalmente quando estas envolvem homens em situações de poder. Eles sabem que ripostar com um processo por difamação deixa as denunciantes em apuros, começando desde logo por não terem como acionar uma equipa legal equiparada que as defenda. O movimento #MeToo pode ter crescido à escala global graças ao envolvimento de estrelas de Hollywood, mas sejamos claros: as vítimas de violência sexual não são todas atrizes com elevado poder económico. Bem pelo contrário. E o jogo de poder alavancado pelos agressores também se alimenta dessa certeza de facilidade de manutenção de silêncio: elas raramente têm como lhes fazer frente. Não têm nem o dinheiro, nem a reputação pública do seu lado.
O mito das falsas denúncias
Recordam-se de em 2017, uma mulher desconhecida ter feito uma publicação no Facebook, acusando o cineasta Brett Ratner de agressão sexual? A resposta foi imediata: uma ação judicial por difamação contra ela. A mulher foi aconselhada por um advogado a apagar a publicação mas, umas semanas depois, o LA Times publicava uma reportagem onde outras seis mulheres, incluindo atrizes, acusavam Ratner de assédio sexual e comportamentos inapropriados. Na altura, o advogado da mulher que ousou fazer a primeira denúncia pública frisava que a retaliação pela via do processo de difamação não a pretendia silenciar apenas a ela: a ideia seria enviar uma mensagem clara das consequências a outras que pensassem em fazer o mesmo. Mas o tiro poderá ter saído pela culatra. O cineasta acabou por retirar a queixa por difamação e, como é comum no EUA, chegaram a um acordo.
Só que nem sempre corre assim. A guerra jurídica, para quem tem poucos recursos financeiros, pode trazer um sentimento de impotência e de medo esmagador às vítimas. Ou só a ideia de ter de passar por isto pode demover muitas outras de sequer tentar. Quem recorre a esta estratégia também sabe disso. Por outro lado, as vítimas sabem também que a sociedade ainda é muito mais permeável à defesa da boa honra do alegado agressor, acreditando na sua palavra como ponto de partida, principalmente se foram famosos – como se estes não tivessem “necessidade” de assediar ninguém. E bastante punitiva das alegadas vítimas, sobre as quais recai uma desconfiança histórica, como sendo as ardilosas, que têm algo a ganhar com tal acusação e vexame púbico, preconceitos estes que pouco têm de empírico.
Existem falsas denúncias? Sim, e devem obviamente ser punidas, mesmo que sejam, reforço, absolutamente residuais. A sociedade ainda prefere acreditar que os números são ao contrário? Parece que sim
Algo que explica muito bem o incrível livro “#MeToo: Um Segredo Muito Público” (do coletivo de investigadoras portuguesas Maria João Faustino, Júlia Garraio, Rita Santos e Sílvia Roque), que faz uma análise bastante séria de factos e números do assédio sexual: “Importa sublinhar que as falsas denúncias de crimes sexuais não são mais elevadas do que as relativas a outros crimes e são efetivamente baixas, estimando-se que se situam entre 2% a 10%. Apesar de não haver evidência de que haja uma maior incidência de denúncias falsas nos crimes sexuais, legados de centenas de anos de descrença na palavra das mulheres fazem com que a categoria jurídica ‘falta de provas’ seja interpretada de forma equivocada como sinónimo de falsa denúncia”. Reforçando também estas importante reflexão quanto aos casos mais mediáticos, que não pode deixar de ser feita: “O facto de grande parte dos homens acusados ter um forte poder económico que lhes permite contratar equipas de advogados com amplos recursos contribui para adensar o potencial dos tribunais como espaço de deslegitimação da palavra das vítimas e reposição das relações de poder tradicionais”.
Existem falsas denúncias? Sim, e devem obviamente ser punidas, mesmo que sejam, reforço, absolutamente residuais. A sociedade ainda prefere acreditar que os números são ao contrário? Parece que sim. Ppelo menos é o que faz ao questionar automaticamente a índole da vítima, que não é mais do que dizer que acredita mais no alegado agressor. E este é um problema estrutural de normalização da violência sexual. Os julgamentos fazem-se em tribunal e não nas redes sociais? Absolutamente de acordo. A justiça tem vieses na forma como olha para estes casos? Tem, e não podemos menosprezar isto. Não é ao acaso que a difamação entre nesta equação como arma de arremesso jurídica bastante estratégica. E, infelizmente, uma estratégia bem conseguida.