Um casal almoça tranquilamente num restaurante. Não reparo neles até a senhora que os serve se aproximar e perceber que está a tentar interagir com uma criança pequena. Não tem sequer dois anos. E surpreende-me não ter dado ainda por ela. A senhora tenta uma reação do pequeno, graceja, faz barulhos, pergunta-lhe se quer sobremesa. Nada. Comenta, por fim, que o bebé é muito sossegado. Não se lhe ouviu um ruído durante toda a refeição. “É o telefone. Podíamos fazer-lhe agora uma operação ao cérebro que não dava por nada. Está anestesiado”, diz a mãe satisfeita.
Não é o único que está anestesiado. Nas férias, vejo famílias inteiras a jantar em silêncio, cada um agarrado ao seu telefone. Crianças pequenas de olhos vazios em frente a vídeos curtos que se sucedem, estridentes e coloridos, de grandes phones nas orelhas para assegurar que o mundo que as rodeia não lhes entra pelos ouvidos.
“Os meus alunos têm duas mãos esquerdas. Não conseguem fazer nada com os dedos”, queixa-se um professor, que regressou ao ensino das artes depois de um interregno de dez anos na docência. Encontrou um mundo novo. “Não lhes consigo captar a atenção para nada que dure mais de dez minutos”. O excesso de estímulos tornou-os insensíveis, irrequietos, incapazes de contemplação, sem ferramentas para lidar com a frustração e o tédio e, em consequência, esvaziados de criatividade e empatia.
Estão em silêncio. Há quem se alegre com isso e forneça mais uma dose de ecrãs em busca de sossego. Há quem se assuste com isso. Como aquele professor de secundário que contou uma vez como parou diante da porta da sala que o horário lhe indicava, com uma dúvida. “Como é possível estar tudo tão silencioso? Já deu o toque de entrada”. Intrigado, espreitou para dentro. Lá estava uma sala inteira de adolescentes imersos no silêncio sepulcral da internet. “Tão diferente da minha juventude”, pensou, com um amargo de boca.
Parecem fechados para dentro, mas estão de portas escancaradas para o mundo. Os desconhecidos entram-lhes no quarto a meio da noite. As crianças a quem costumávamos ensinar a não aceitar doces de estranhos passam agora horas a falar com eles, confessando-lhes os segredos, aprendendo-lhes os valores, seguindo-lhes os exemplos nos vídeos de Youtube que parecem tão inofensivos, mas que não nos damos ao trabalho de ver, nos posts de Instagram, que lhes moldam os sonhos, nas dancinhas do Tik Tok, que os absorvem até à alienação. Não admira que deixemos de reconhecer os filhos que, no fundo, não criámos.
A vida torna-se num jogo de recompensas imediatas. A gratificação tem de ser instantânea. E se for só um bocadinho? O ex-editor da revista Wired Chris Anderson disse uma vez que, numa escala do açúcar ao crack, os ecrãs estão mais perto do crack. “Os jogos hoje não são como os do nosso tempo. Nós jogávamos contra o computador. Os miúdos jogam em rede e o jogo não tem fim”, explica-me um amigo engenheiro informático, garantindo que estes novos videojogos são desenhados para ser altamente aditivos. “Está fora de questão deixar os meus filhos jogar online antes dos 16 anos”.
Logo alguém virá acusá-lo de querer parar o vento com as mãos, de impedir os filhos de chegar aos prodígios da civilização digital. Mas, por todo o mundo, os filhos das elites começam precisamente a regressar à educação analógica.
Em São Paulo, um grupo de mães de escolas privadas iniciou o movimento Desconecta, para banir os telemóveis do meio escolar. Em França, fazem-se colónias de férias sem internet para garantir o detox digital, na Suécia, regressaram às salas de aulas os livros em papel, no Reino Unido, a Câmara dos Comuns emitiu em maio uma recomendação para banir os telefones do espaço escolar (nem os professores devem ser vistos a usá-los em frente aos alunos) e proibir as redes sociais aos menores de 16 anos. Na Florida, nos Estados Unidos, foi aprovada este ano uma lei que obriga as plataformas das redes sociais a fechar as contas de crianças até aos 14 anos e a garantir o consentimento dos pais para que jovens de 14 e 15 anos as possam usar.
E esta será só mais uma maneira de cavar o fosso da desigualdade entre os que têm acesso a escolas analógicas, brincadeiras ao ar livre, pais com tempo e paciência para jogos e histórias e os que passaram a infância sozinhos em frente a um telefone. “Leu o Admirável Mundo Novo? A certa altura temos exatamente aquilo. Temos a casta dos alfas que consegue pensar, que tem informação de contexto, vocabulário, que consegue concentrar-se. São intelectualmente saudáveis. E depois temos a casta dos gama, uma enorme população que vai comprar pão, vai ao restaurante, fazem tudo mas não têm outras competências para pensar o mundo”. Quem o disse foi o neurocientista francês Michel Desmurget, numa entrevista ao jornal i em 2021, depois de lançar o livro “A Fábrica de Cretinos Digitais”.
Numa altura em que os professores escasseiam, é preciso refletir sobre o aviso que fez Desmurget nessa entrevista sobre a possibilidade de substituir docentes por computadores. “Todos os estudos mostram que quanto mais se põe o digital nas escolas, menos as crianças aprendem. Se for por razões económicas, assuma-se. Agora, não é progresso pedagógico, diminui a qualidade pedagógica e aumenta as desigualdades”. Também há quem negue as alterações climáticas e, no entanto…
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