Já Platão falava na demagogia como uma versão corrompida do ideal de governo democrático, manifestando-se por via de uma liderança carismática que, pretendendo garantir interesses próprios, explora os desejos e os medos da população para ganhar poder. A demagogia e o populismo fizeram, desde cedo, o seu caminho por meio de períodos históricos e formas de governo, razão pela qual Mudde e outros politólogos defendem que o populismo é uma ideologia de baixa densidade que se acopla a diversas grandes ideologias. Embora se trate de um fenómeno de longo prazo, a verdade é que o populismo tem assumido um papel determinante no “fazer político”, revelando-se, sobretudo, um mecanismo de construção e consolidação de “personagens políticas”, cuja performance representa uma clara degradação do regime democrático, ao explorar o ressentimento para efeitos de polarização política e social, segundo a velha máxima “dividir para reinar”.
Como defendem Daniel Ziblatt e Steven Levitsky (Como Morrem as Democracias), esse modo de atuar é responsável pela “morte da democracia”, ao colocar em causa os princípios elementares, razão pela qual Yascha Mounk (Povo vs Democracia) defende que vivemos um período em que os princípios liberais (Estado de Direito, separação de poderes, liberdades individuais) se apartam da democracia como regime, fazendo desta um regime formalista, baseado exclusivamente na vontade da maioria – “as pessoas de bem”/”the people”. No seio deste fenómeno encontram-se as chamadas “guerras culturais”, disputas sobre questões de ordem moral – como aborto, eutanásia, direitos das minorias sexuais e raciais, identidade de género, família, religião e laicidade, imigração e refugiados, entre outras – que polarizam a sociedade de forma insuperável. À medida que se dissolve a ideia de “chão comum”, a sociedade é observada através de lados opostos, já que, como refere Ezra Klein (Why We’re Polarized), a identificação política passou a constituir parte determinante da nossa identidade abrangente.
Ora, este prelúdio tem tudo a ver com a realidade americana, verdadeiro referencial teórico nesta matéria. De modo muito fático, é com a eleição de Donald Trump, em 2017, que o populismo e a demagogia mais desbragada se consolidam, dando origem a réplicas como Jair Bolsonaro ou Boris Johnson. A emergência de tais figuras representou uma transformação profunda no campo conservador, com uma radicalização dos partidos da direita em direção a agendas identitárias nativistas (ver v.g. Os Identitários de Zúquete) que se afastam do quadro consensualista do centro democrático. O espetáculo político associado a estas figuras e a mediatização política, potenciada pelas redes sociais, produzem efeitos eleitorais que tornam esta tipologia de atores políticos “apetecível” para os partidos de poder.
Se Donald Trump é uma figura que condensa a tipologia populista e demagógica com as “guerras culturais”, através da sua afirmação messiânica (a que a tentativa de assassinato veio dar bálsamo de mártir), a escolha de JD Vance para seu potencial Vice-Presidente encapsula tudo o que anteriormente foi dito, com o acréscimo de determinar os rumos do Partido Republicano.
Senador pelo Ohio, e autor do best-seller “Hillbilly Elegy”, obra que retrata a realidade das populações brancas pobres da América não-urbana, JD Vance, de 39 anos, é o rosto de uma nova geração de políticos que entendeu o populismo conservador como um modo de sucesso de fazer política, passando de crítico a apologista do trumpismo. A ascensão de Vance e a sua participação nas chamadas “guerras culturais” – defende políticas de imigração mais restritivas, é um crítico feroz da educação progressista nas escolas e universidades (teoria crítica da raça e estudos de género), defende a família tradicional americana, opondo-se ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, e enfatiza que Hollywood é uma indústria que destrói os “bons velhos costumes” americanos – refletem uma mudança profunda na identidade e nas prioridades do Partido Republicano, levantando questões sobre o futuro do partido e da política americana como um todo.
Tradicionalmente marcado pela defesa do livre mercado, da intervenção militar no exterior e políticas fiscais conservadoras, o Partido Republicano, através da trumpização do partido, tem direcionado a sua agenda para dimensões nacionalistas que pretendem recuperar (o imaginário) dos “happy golden days of yore” de uma classe média branca trabalhadora, com os seus hot-dogs e jogos de basebol aos domingos. Aliás, os politólogos Aurelien Mondon e Aaron Winter mostraram, em diversos trabalhos, como a concentração nesse eleitorado foi essencial para a vitória de Trump e para a confirmação do Brexit.
No entanto, se esse plano tem uma dimensão sobretudo moral, assente numa nostalgia ideológica, a forma como este tipo de políticos interpreta a democracia, por via da diluição do primado liberal, poderá colocar em causa, de forma definitiva, a vigência do republicanismo americano como o conhecemos. Isso pode acontecer através do fim da separação de poderes (nomeadamente por via do controlo do Supremo), da liberdade de opinião e de imprensa (através do financiamento e outros mecanismos de favorecimento de órgãos de comunicação alinhados com o partido) e da supressão de mecanismos de garante de direitos fundamentais (como a reversão do aborto, do casamento homossexual, ou de políticas de correção de assimetrias raciais e étnicas). Considerando as decisões tomadas nos últimos anos nos Estados Unidos, e olhando comparativamente para a realidade de países como a Hungria sob o comando de Viktor Orbán, a democracia americana atravessa a sua crise mais profunda, evidenciando sinais de transição para uma democracia iliberal, que poderá acabar com o republicanismo vigente americano e abrir a porta à era dos autoritarismos reciclados.
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