A importância de documentarmos a nossa atividade profissional (enquanto cientistas, mas também noutras áreas de atividade, diria em quase todas até) é especialmente evidente quando – imaginem – fazemos uma descoberta absolutamente revolucionária e – incrivelmente! – ninguém tinha conhecimento de tal descoberta.
Ou seja, registrarmos as nossas descobertas e, acima de tudo, as divulgarmos a colegas e ao público em geral, sobre a forma de publicações científicas, primeiro, e depois de forma mais generalizada em meios de comunicação social, é essencial. As descobertas serão, assim, mencionadas por outros(as) investigadores(as) que se dediquem ao estudo de processos biológicos ou doenças relacionadas. Esta prática, de partilha e de escrutínio das descobertas científicas e médicas, tem vários séculos de existência. Se recuarmos a tempos onde a partilha de informação era muito mais lenta e difícil do que nos dias de hoje, grande parte das descobertas científicas e/ou médicas acabava por ter impacto reduzido, limitado à comunidade científica ou médica local (num determinado país e universidade, quando estas passaram a existir). Uma descoberta que fosse partilhada internacionalmente – através de viagens de cientistas e clínicos a outras cortes que eram já frequentes na idade média, na Europa, e até antes noutros continentes – teria necessariamente muito mais impacto e poderia resultar numa mudança de paradigma, de conceito ou de políticas de saúde.
O papel do colesterol, e especificamente do LDL, está amplamente demonstrado em doenças cardiovasculares como os enfartes do miocárdio e a aterosclerose, por exemplo. Mas que tem tudo isto a ver com o cancro? A verdade é que as células de cancro possuem recetores para o colesterol e para a molécula LDL, em particular
François Poulettier de la Salle foi um clínico e químico francês que terá, em pleno século XVIII, descoberto pela primeira vez a molécula (o lípido) denominada colesterol. Estudando cálculos biliares, as conhecidas pedras na vesícula, e as consequências que têm na pessoa que as forma, De la Salle descobriu que os cálculos biliares continham colesterol na sua forma sólida. No entanto, De la Salle não escreveu qualquer publicação a reportar esta extraordinária descoberta. Foi somente em 1815 que Michel Eugéne Chevreul conseguiu isolar e purificar a molécula que denominou por colesterol (do grego “bílis sólida”). Esta descoberta criou toda uma área de investigação e de estudos clínicos, culminando com a descoberta de colesterol circulante (no sangue), bem como do complexo processo molecular envolvido na produção da molécula de colesterol. Esta descoberta, em 1959, resultou na atribuição do Prémio Nobel em 1964 a Bloch e Lynen e, anos mais tarde, em 1976, levou à utilização na prática clínica de moléculas especificamente dirigidas contra enzimas essenciais para a produção de colesterol (as “estatinas”), com importantes efeitos no controlo e prevenção de doenças cardiovasculares.
O colesterol é essencial para a vida animal. A maior parte do colesterol disponível para as nossas células é ingerido através da alimentação ou sintetizado pelas células do fígado para ser depois transportado para a circulação sanguínea e para os restantes órgãos do nosso corpo. Existe um complexo processo de controlo dos níveis de colesterol corporais (com especificidades nomeadamente no cérebro), envolvendo a importação e a exportação de colesterol ao nível celular, nomeadamente do denominado “mau colesterol”, o “LDL” (do Inglês “lipoproteína de baixa densidade”). Ao nível celular, o colesterol (e outras moléculas lipídicas transportadas pela lipoproteína LDL) participa na formação das membranas celulares bem como em vias metabólicas e biosintéticas. O consumo de lípidos como o colesterol pode então servir como fonte de energia (pela sua degradação nas mitocôndrias) bem como de componente estrutural essencial para a formação e o funcionamento das membranas celulares.
O papel do colesterol, e especificamente do LDL, está amplamente demonstrado em doenças cardiovasculares como os enfartes do miocárdio e a aterosclerose, por exemplo. Mas que tem tudo isto a ver com o cancro? A verdade é que as células de cancro possuem recetores para o colesterol e para a molécula LDL, em particular. Como são metabolicamente muito ativas (dividem-se rapidamente e de forma muitas vezes exponencial), as células de cancro podem rapidamente acumular colesterol, que será utilizado precisamente para fornecer energia e componentes das membranas desta massa de células em expansão. A molécula de colesterol está também envolvida nas vias biosintéticas de produção de hormonas. Consequentemente, o que observamos é que a incidência e a progressão de cancros hormono-dependentes (como certos cancros da mama e o cancro da próstata, por exemplo) é mais elevada e acelerada em pessoas com níveis elevados de colesterol e dislipidemias (perturbações nos níveis sistémicos de lípidos), em geral. Mais, o colesterol promove a migração celular e favorece a formação de metástases (nomeadamente em cancro da mama). Os mecanismos de regulação celular que deveriam atuar para garantir que a disponibilidade de colesterol se mantinha controlada (reduzida) são ineficazes nas células de cancro, resultando na acumulação e utilização destas moléculas para benefício do próprio cancro. Como um ambiente rico em lípidos (hipercolesterolemia ou outras dislipidemias), por outro lado, inibe a (boa) função do sistema imune e pode levar a consequências ao nível cardiovascular, o controlo dos níveis lipídicos sistémicos, nomeadamente através das estatinas ou de outras moléculas mais recentes, tem também sido proposta para o tratamento de alguns cancros.
Os colegas que beneficiaram dos estudos pioneiros de De la Salle, no século XVIII, foram generosos e honestos ao mencionarem o seu nome repetidamente nas suas publicações e prémios que resultaram desta descoberta. Sem os estudes de De la Salle não teria sido possível a caracterização e posterior intervenção terapêutica para o controlo do colesterol.
Façamos o mesmo: ao percebermos, séculos mais tarde, que o colesterol, esta molécula complexa e os processos biológicos em que está envolvida, tem também impacto na incidência e progressão e eventualmente na resposta terapêutica de certos cancros, não podemos deixar de reconhecer e de valorizar o trabalho de De la Salle.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.