O debate lançado pelo manifesto dos 50 – “Para uma reforma na Justiça” – está, como seria de prever, a resvalar para uma polarização, sem direito a meio termo: de um lado, os autores do documento dizem que tudo está mal no Ministério Público; do outro, os procuradores, garantem que está tudo bem. Proponho encontrarmo-nos “a meio do caminho”, não caindo em generalizações, seja de um lado ou de outro, mas partindo de um processo pessoal, que ficou conhecido como o o “caso das vigilâncias aos jornalistas”.
Na nossa vizinha do lado – a Sábado – o procurador Rui Cardoso, um magistrado com quem se pode discordar, debater e aprender, garante que a lei “já exige ponderação, rigor, proporcionalidade e concreta fundamentação” aos magistrados do Ministério Público “no uso dos meios de investigação especialmente intensivos”. A pergunta que se impõe é: e quando tal não acontece? Quais as consequências? No caso das vigilâncias aos jornalistas, a resposta a esta questão foi esclarecedora.
Antes de entrar no assunto, convém dizer o seguinte: eu e o Henrique Machado (CNN/TVI) fomos absolvidos em primeira instância, condenados, no Tribunal da Relação de Lisboa, mesmo depois de termos alertado para a presença irregular de um juiz no coletivo, estando o processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça.
As “diligências necessárias”
Vamos, então, ao caso das vigilâncias. Como foram ordenadas? Certamente, pensará o leitor, através de um despacho fundamentado, elencando as normas legais e a sua necessidade. Engana-se. A ordem escrita da procuradora Andrea Marques foi tão curta que cabe numa linha: “Assim, determino à PSP que proceda às diligências necessárias a alcançar tal desiderato relativamente a Carlos Rodrigues Lima e Henrique Machado”. “Diligências necessárias” terá sido a expressão mais à mão para evitar escrever vigilâncias, o que, porventura, obrigaria a uma melhor e mais cuidada fundamentação. Mas foi assim: “diligências necessárias”, que dá um pouco a ideia de “façam o que for preciso”. Umas folhas mais à frente, novo despacho: a 2 de maio de 2018, a procuradora deixou consignado ter-se reunido “com a PSP, tendo-me inteirado dos desenvolvimentos da diligência ordenada por despacho de fls 13. Nos próximos dias, ser-me-á entregue, para junção aos autos, a informação de serviço respetiva”. Qual diligência? A tal necessária…
Só cinco dias após a reunião é que a palavra “vigilância” apareceu escrita no processo, com Andrea Marques a, uma vez mais, consignar ter-lhe sido entregue “em mão pelo senhor comissário da PSP relatório de vigilância realizada nos moldes determinados em despacho anterior proferido nos autos”. Quais moldes? Obviamente, os necessários…
Assim, determino à PSP que proceda às diligências necessárias a alcançar tal desiderato
O mesmo tom – ausência de fundamentação – foi utilizado para a procuradora me vasculhar a conta bancária. Suspeitas de corrupção, tráfico de influências, oferta indevida de vantagem? Nada foi escrito no processo. No despacho, ordenou-se o Banco de Portugal a remeter “todas as contas bancárias e produtos financeiros de que seja titular, co-titular ou autorizado a movimentar” entre 1 de dezembro de 2017 e 71 de julho de 2018. Ou seja, vem tudo de arrasto mas, como é óbvio, não serviu para nada.
Perante isto, apresentei uma queixa disciplinar no Conselho Superior do Ministério Público, assim como uma queixa-crime contra a procuradora no Ministério Público do Tribunal da Relação de Lisboa, legalmente competente para a investigação. Vamos agora ao resultado.
Uma averiguação preliminar conduzida por inspetor concluiu, em síntese, que as eventuais infrações disciplinares relativas à vigilâncias policiais estavam prescritas. Ou seja, foi descoberto um novo caminho marítimo para a Índia: cometida uma infração disciplinar, basta meter o processo na gaveta durante um ano. Quando o visado toma conhecimento, a falha disciplinar está prescrita, porque conta da data da prática da mesma e não do seu conhecimento pelo afetado. Em relação ao levantamento do sigilo bancário, foi proposta a instauração de inquérito disciplinar.
Pelo meio da averiguação, o inspetor do Ministério Público referiu que a procuradora Andrea Marques, após ter sido questionada, “em vez de esclarecer ponto por ponto cada uma das questões, elaborou um texto onde extravasou o pedido, fazendo abordagem jurídica e sem prestar esclarecimentos necessários quantos a alguns pontos”, não respondendo diretamente a várias questões.
Também a ex-diretora do DIAP de Lisboa, referiu o inspetor, “não respondeu a cada uma das questões concretas”, “antes elaborou um texto onde prestou algumas informações sobre a tramitação processual do aludido inquérito, ao encontro de algumas situações”. “Contudo, anota-se não ter esclarecido”, finalizou, várias “questões elencadas”. Quanto ao dever de objetividade, ficamos todos esclarecidos, porém, sobre o seu cumprimento.
“Em vez de esclarecer ponto por ponto cada uma das questões (a procuradora Andrea Marques) elaborou um texto onde extravasou o pedido, fazendo abordagem jurídica e sem prestar esclarecimentos necessários quanto a alguns pontos”
No plenário do Conselho Superior do Ministério Público, os membros magistrados votaram pelo arquivamento do processo disciplinar, considerando que o despacho que ordenou as vigilâncias policiais poderia ter “deficiências” , coisa pouca, as quais não chegavam para se atingir a “conclusão de estarmos perante responsabilidade disciplinar, por violação do dever de zelo”.
Sobre o registos bancários – e tendo à frente a proposta do inspetor judicial que considerou não ter sido respeitado o “princípio da proporcionalidade e os despacho proferidos não terem sido devidamente fundamentados” – os mesmos magistrados concluíram que, embora a conduta da procuradora Andrea Marques possa ter sido “funcionalmente menos conseguida”, seja lá o que isso for, não tinha relevância disciplinar.
“Admitindo tal valoração disciplinar poderia, no limite, colocar em perigo a autonomia técnica do magistrado”. Mais do que qualquer direito dos cidadãos, o importante é salvaguardar o magistrado. Dois elementos não magistrados deixaram duas declarações de voto contra a maioria.
Hierarquia e queixa-crime parada há três anos
Como a hierarquia – a tal que existe e funciona – limpou a água e sabão as infrações disciplinares, avancei para uma queixa crime contra Andrea Marques e , ainda em 2021. Há cerca de três semanas, após consulta do processo, verifiquei que nenhuma diligência tinha sido realizada. Em três anos, ninguém foi ouvido, não se recolheram elementos de prova como comunicações, emails ou outros documentos que pudessem atestar o crime de, por exemplo, abuso de poder, uma intenção de prejudicar alguém.
Paralelamente a esta queixa, Henrique Machado apresentou, junto do Supremo Tribunal de Justiça, uma denúncia contra a ex-diretora do DIAP de Lisboa. Neste inquérito, foram ouvidas três pessoas: a ex-procuradora coordenadora da 1ª secção do DIAP Regional de Lisboa e os polícias que efetuaram as vigilâncias. Todos prestaram depoimentos bastante reveladores, mas ninguém tirou as devidas consequências. (A autorização que obtive para consultar este processo foi imediatamente comunicada ao chefe de gabinete da Procuradora-geral da República).
A diretora do DIAP assumiu o compromisso de informar a Procuradora-geral das diligências que a PSP iria efetuar
O superintendente José Bastos Leitão declarou que após “apurado o sentido das diligências pretendidas pelas senhoras magistradas” Andrea Marques e Fernanda Pêgo (as vigilâncias) “reuniu com o diretor nacional da PSP”, tendo “a senhora diretora do DIAP de Lisboa assumido o compromisso de “informar a Procuradora-geral da República das diligências que a PSP iria efetuar”. Alguma vez Joana Marques Vidal (à época Procuradora-geral) foi informada e concordou com as diligências? Ninguém sabe, porque a ex-PGR nunca foi questionada sobre o assunto.
E por falar em fundamentação, Rui Santos Costa, subintendente da PSP que realizou a operação, referiu, por sua vez que “por orientações verbais da Autoridade Judiciária só se procedeu às vigilâncias relativamente ao alvo Carlos Rodrigues Lima”. Bastam umas bocas e adiante…
E por falar em hierarquia, convém chamar o depoimento da procuradora Auristela Pereira, imediata superiora hierárquica de Andrea Marques. Afirmando ter desconhecido qualquer ordem dada para a vigilância de jornalistas, esta magistrada foi taxativa: “Com mais de 30 anos de serviço, maioritariamente na investigação criminal e dois de inspetora do Ministério Público, nunca viu um despacho em que se determinasse a realização de diligências de vigilância sem as concretizar e especificar por despacho”. A mesma magistrada – superiora hierárquica, recorde-se, de Andrea Marques – acrescentou no seu depoimento nunca ter trocado uma palavra com a sua subordinada acerca da investigação aos jornalistas, porque Andrea Marques “tratava diretamente com a diretora do DIAP”. A hierarquia a funcionar….
A procuradora “de muito bom nível”
Mas há mais: em depoimento escrito prestado neste inquérito do Supremo Tribunal de Justiça, a ex-diretora do DIAP declarou que os “fundamentos de facto e de direito, extensão, duração, desenvolvimento e resultados das diligências ordenadas e realizadas encontram-se plasmados” no processo. Uma afirmação que simplesmente passou sem qualquer escrutínio criminal ou disciplinar, o que a transforma numa séria candidata ao “prémio lata do século”. Aliás, no “caso das vigilâncias”, o Ministério Público “fundamentou” mais a sua posição num comunicado público do que, como habitualmente se diz, no local próprio, o processo.
Com mais de 30 anos de serviço, nunca vi um despacho em que se determinasse a realização de diligências de vigilância sem as concretizar e especificar por despacho
No despacho que arquivou este inquérito no STJ, o procurador referiu que a ordem de vigilância dada pelas duas magistradas “embora nos pareça ingénua e de alcance muito limitado, não se nos afigura ofender o direito dos jornalistas visados à manutenção do seu segredo sobre as suas fontes de informação“.
O problema está, precisamente, aqui: seja por ingenuidade, incompetência, burrice crónica, má-fé, dolo ou qualquer coisa mais, ninguém foi responsabilizado, apesar de tudo o que foi descrito neste texto. Porque, acima dos direitos dos cidadão, está a autonomia do magistrado. Como prémio pelo mérito, a procuradora Andrea Marques foi classificada pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Acção Penal como de “muito bom nível”. A ex-diretora do DIAP de Lisboa está há cinco anos a investigar uma juíza por causa de uma impressora.
Como jornalista não posso deixar de citar o acórdão dos juízes de primeira instância, documento que resulta da audição de dezenas de testemunhas, mais as nossas declarações como arguidos, que nunca invocámos o direito ao silêncio, nem nos furtámos a responder ao que quer que fosse:
“Os arguidos explicaram, de modo muito verdadeiro e sentido, que publicaram as referidas notícias única e exclusivamente com a intenção de cumprir o dever de informar o leitor, ao abrigo da liberdade de imprensa e com respeito por todas as regras que regem a arte do jornalismo”.
Deste modo, o leitor tem o direito a ser informado sobre estes processos judiciais, cumprindo-se assim a função de enorme relevo que é o jornalismo e dando-se espaço à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, que são essenciais numa sociedade moderna, democrática, livre e plural
Acresce que resultou de toda a prova, de forma esmagadora, que os arguidos não prejudicaram a investigação (…) Nesse sentido, a prova foi absolutamente esmagadora e inequívoca, desde juízes, procuradores, inspetores da Polícia Judiciária e até aos próprios visados”.
Mas, no final, só o nosso processo avançou….