Urbano Tavares Rodrigues nasceu faz hoje 100 anos. Há um pouco mais de 20, comecei a ler, de modo obsessivo, grande parte da extensa obra do escritor, com mais de noventa volumes: “A Porta dos Limites”, “A Noite Roxa”, “Bastardos do Sol”, “Nus e Suplicantes”, “Uma Pedrada no Charco”, “Os Insubmissos”, “Imitação da Felicidade”, “Desta Água Beberei”, “Violeta e a Noite”, “O Adeus à Brisa”, “O Eterno Efémero”, ou “Os Cadernos Secretos do Prior do Crato”, entre outros, só para referir romances cujos títulos aprecio. Foi com ele que cheguei a autores como Manuel Teixeira Gomes, ou a Maria Judite de Carvalho. Li ainda vários dos ensaios que publicou, como “O Tema da Morte”, de 1958, a propósito do qual concordámos e discordámos longamente por conta da frase «a literatura autêntica (…) faz-se a partir de vivências, não nasce da boa vontade, requer uma experiência directa daquilo que o escritor pretende comunicar», e ainda “O Mito do Don Juan”, “A Flor da Utupia”, “O Gosto de Ler”, “Um Novo Olhar Sobre o Neo-Realismo”, ou “A Natureza do Ato Criador”. Urbano Tavares Rodrigues foi meu professor, sem eu nunca ter sido, formalmente, aluno dele.
Mas posso também dizer que fomos amigos e que, nos últimos anos de vida (morreu em 2013), Urbano teve a generosidade de várias vezes me oferecer tanto do que tinha tão pouco – tempo. Outras pessoas terão sentido o mesmo, dado que não fui o único aspirante a escritor que Urbano acolheu e incentivou, mas eu era um jovem em busca de referências e aquele nome – Urbano Tavares Rodrigues –, que há muito fazia parte da minha geografia literária, estava já inscrito também na minha geografia afetiva. O jogo de sedução iniciou-se quando aprendi a ler: era difícil um nome invulgar, e que de mais a mais soava bem, não chamar a atenção de alguém que começava a juntar as letras, no meio de outros que se escreviam ao alto, na estante lá de casa. Nos anos seguintes, eu passava a correr, olhava sem reparar, tinha a pressa da infância no corpo e no espírito, mas aquele nome continuava a sorrir-me, a insinuar-se, a atirar-se aos meus olhos. Ainda assim, durante anos, não me aproximei dele, não lhe toquei. Sabia, porém, que, quando a estante fosse menos alta, iria procurá-lo e que, não me perguntem porquê, não haveria mais desencontros. No momento em que, finalmente, os meus olhos e aquele nome se viram à mesma altura, experimentei a aquela sensação única de entusiasmo com um autor que nos faz querer ler de uma assentada toda a obra dele. Eu vinha de ler os neorrealistas e a ficção de Urbano tinha o mesmo apelo social e telúrico que eu encontrava nessas obras, mas tinha mais, muito mais. Desde logo, um requinte estilístico e uma dimensão lírica que me agradavam e que me faziam falta em alguns autores daquele movimento. Foi um caso de paixão, que se exacerbou quando a vida me cruzou com uma das netas do escritor, Inês Tavares Rodrigues Fraga, acabada de se lançar como autora, e ela, sabendo da minha admiração pelo avô, me levou até ele. Recordo o nervosismo que senti ao subir a escadaria, a conversa que tivemos sob o olhar de uma obra de Armanda Passos e a premonição que registou, já com o punho trémulo, num dos livros que levei, “Ao Contrário das Ondas”, e que guardo com muito carinho. Voltei amiúde. Era preciso telefonar, mas ele não se entendia com o telemóvel. Quando percebia quem era, exclamava o meu nome com um entusiasmo sem idade. Desses encontros, guardo fotografias e outras memórias. Recordo o soalho a queixar-se debaixo dos meus pés, bem mais do que dos de Urbano, outrora cavaleiro ágil nas planícies de Moura, nadador exímio no rio Ardila e homem destemido em qualquer circunstância, mas que então não conseguia mais do que arrastar os sapatos pelo chão. Desde o momento em que eu tocava à campainha, até ele assomar à porta cinzenta, para a abrir, passavam uns três ou quatro minutos. As pernas e o espírito exibiam idades distintas. Mal me via, voltava a exclamar o meu nome e abria os braços para um abraço irrecusável, que dirimia distâncias entre aprendiz e catedrático. Cruzávamos o corredor repleto de livros, conversando já, e sentávamo-nos à mesa da sala. Com as golas da camisa desorganizadas, transbordando do topo de um casaco polar indispensável para quem passava os dias parado, a ler e a escrever, e também muito magro, dentro de umas calças de bombazina cansadas, Urbano tinha uma figura que contrastava com o olhar vivaz, curiosíssimo. Em cima da mesa, papéis avulsos, livros, um candeeiro e uma lupa, porque um verdadeiro leitor não desiste nem quando as letras procuram traí-lo e se lhe apresentam mais magrinhas e a dançar. E também um dinossauro, brinquedo do filho António, nascido quando o escritor tinha 82 anos, e que, quando aparecia, pequenino, junto de nós, o fazia erguer os braços e gritar: “António, filho adorado!”.
Na minha vida, Urbano inscreve-se nos capítulos da admiração, da alegria, da ternura, da amizade, mas também no da injustiça. Os passos arrastados pelo corredor expunham uma fragilidade da qual eu não conseguia deixar de me compadecer. Entristecia-me a evidência de que, mal inaugurávamos a nossa amizade, já se visse a partida a anunciar-se no corpo dele. Urbano Tavares Rodrigues representou, para mim, aquele tipo de pessoa com a qual se estabelece uma cumplicidade imediata, das que dispensam longos anos de convívio. É graças a casos destes que percebemos o lado fantástico da amizade, que é capaz de ser muito grande e, ao mesmo tempo, caber num tempo curto. Tal evidência não nos liberta de sentimentos de injustiça e de dor, por não se ter podido conviver mais com quem partiu, apenas reconforta um pouco. Aconteceu-me o mesmo com João Semedo, que também arrastava os passos pela casa, para me abrir e fechar a porta. Pensa-se nestas amizades e deseja-se ter nascido mais cedo, inventado uma máquina do tempo, ou uma vacina para a cruel doença da morte.
Quando Inês, a neta de Urbano, se encontrou comigo defronte da Maternidade Alfredo da Costa, onde eu a esperava, para ela me levar a casa do avô, enquanto o vento e os nervos me beliscavam a pele e o meu casaco castanho, eu não poderia imaginar que a irmã, a outra neta do escritor, Sofia Fraga, viria a ser minha editora e uma das principais responsáveis por eu me ter lançado como romancista, tal como ele antecipara na dedicatória que fizera, em 2007, em “Ao Contrário das Ondas”, e que termina assim: «com a esperança de o ver surgir como romancista».
De Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Lourenço disse escrever à flor do tempo, isto é, sobre o presente. Talvez por isso a sua obra não se enquadre absolutamente dentro de nenhuma categoria ou escola – Urbano experimentou todas, verteu nos seus contos, novelas, romances e ensaios aquilo que o mundo lhe mostrou, com um apuro estético e humano só ao alcance dos maiores talentos. Dedicou toda a vida aos livros e à literatura. Leu e escreveu até ao fim. Quando foi homenageado no festival Escritaria, em Penafiel, em 2008, o seu estado de saúde já não lhe permitiu estar presente, mas ele enviou uma frase que foi gravada nas paredes daquela cidade e que diz: “Espero ainda um tempo de luz em que floresça a igualdade e o livro seja o rumor da fonte que se partilha”. Obrigado, Urbano.
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