O jornalista José Rodrigues respondeu, na Visão, à minha última intervenção, com uma nova lista de considerações. Parte delas dizem respeito à questão sobre Cristóvão Colombo, as quais continuarei, e outra parte às questões das origens do fascismo.
Sobre a sua apreciação das minhas palavras quanto à sua tese de doutoramento, esclareço que não ponho em causa a avaliação nem o rigor da área, mas apenas que se trata de uma área diferente daquela que está aqui a ser debatida. Além disso, conheço o júri que participou nas provas, já que as mesmas foram noticiadas pela RTP. Poderá continuar a querer falar sobre o assunto, como parece ser o caso, mas da minha parte está encerrado.
Chegamos, mais uma vez, ao caso de Cristóvão Colombo – o nome pelo qual era conhecido, à época, em Portugal, conforme atesta uma carta de D. João II endereçada ao mesmo, em 1493, e pelas crónicas portuguesas deste período. Como diz o jornalista José Rodrigues, e bem, o problema das fontes é relevante, tal como o contexto das teorias do Colombo não genovês. Por isso será importante notar que estas só surgem com destaque nos finais do século XIX, em particular aquelas que o davam como espanhol, como indicou. Até aí praticamente ninguém colocava em causa a sua naturalidade como genovês. Interessante período esse, onde se utilizava a questão do lugar do nascimento para inflar o orgulho nacional. Quanto às teorias do Colombo português, só surgem a partir de 1916, pela mão de Patrocínio Ribeiro. Entre tantas identificações atribuídas a Colombo, surgiu, mais recentemente, uma que avança a existência de dois Colombos – um genovês, e outro que foi às Américas.
Essa é a hipótese do romance do jornalista José Rodrigues dos Santos, o qual reitero que, enquanto obra de ficção, não merece discussão, e por isso quaisquer provas da naturalidade de Colombo não devem ser procuradas aí. Na realidade, relembra um pouco o caso do Código Da Vinci, de Dan Brown, que popularizou ideias que não têm sustento documental, como tantos investigadores da área mostraram. Outro exemplo, mais próximo da temática que estamos a debater, é o filme realizado por Ridley Scott, de 1992, 1492: Conquest of Paradise, pródigo em erros históricos e que é pouco fiável para se tentar compreender a biografia de Colombo. Mas, reitero, uma coisa é uma obra de ficção, outra é o estudo da História.
Dentro desta ideia da existência de dois Colombos, o jornalista José Rodrigues dos Santos caracteriza o genovês como “plebeu iletrado e tecelão” e, por oposição, o que foi às Américas saberia “matemática e latim mas não era capaz de falar italiano”. Vamos por partes. O próprio jornalista é que o está a caracterizar dessa forma, pois há documentação assinada por Colombo, em Génova, que prova que não se travava de um iletrado. Infelizmente, comete o erro, comum, de desconsiderar o estatuto da família: o pai de Colombo, Domenico Colombo, era mestre da corporação de tecelões de Génova, o que lhe dava um certo estatuto. Para o perceber é necessário compreender a importância dos mesteres, isto é, dos ofícios e das suas organizações nas sociedades da época – a título de curiosidade, um projecto de investigação recente estudou este tema para o caso português: MedCrafts – Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV. Por isso, Colombo não era filho de um simples cardador de lã. Além disso, tenho fortes dúvidas quando o jornalista José Rodrigues dos Santos refere os conhecimentos de matemática e de latim de Colombo; o seu latim estava pejado de erros, conforme já foi demostrado por vários estudos, e a sua matemática e o seu conhecimento da esfera celeste e da navegação era tanto que durante a sua terceira viagem, apercebendo-se que os seus levantamentos matemáticos e astronómicos não batiam certo, concluiu que o planeta tinha a forma de uma pêra, ou, nas suas palavras, da «teta de uma mulher». Caracterizar Colombo como o faz é deixar implícito que era impossível uma pessoa como ele ter adquirido estes conhecimentos de forma amadora, quando os seus escritos revelam uma personalidade tenaz, empenhada e que aprendeu à sua própria custa, o que lhe dá ainda mais mérito. Sobre não saber italiano, isto é, o dialeto lígure falado em Génova, tal não corresponde à realidade: há pelo menos duas apostilhas, da sua mão, na edição que possuía da História Natural de Plínio, e mais uma entrada no Livro das Profecias que compôs com frei Gaspar Gorrício, conforme já foi demostrado. Tendo em conta a necessidade que tinha de falar e escrever castelhano no período mais relevante da sua vida, não parece estranho não encontrarmos algo mais em lígure.
O jornalista José Rodrigues dos Santos refere ainda que era casado com “uma mulher da alta nobreza portuguesa”. Tal também não corresponde à verdade, mas é um erro comum nestes debates: para argumentar que é um casamento impossível de acontecer nestes termos aumenta-se o estatuto social de Filipa Moniz, e baixa-se o de Colombo. Tendo em conta que a sociedade daquele período não se organizava em castas, este tipo de casamentos era possível. Porque ao contrário do que muitos pensam, Filipa Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo (capitão do donatário da ilha de Porto Santo), não pertencia à “alta nobreza”, esta organizada, de resto, em vários níveis. O seu pai tinha o estatuto de “cavaleiro”, o que podemos classificar como um escalão intermédio dentro da nobreza deste período, o que, portanto, não fazia dele membro da alta nobreza. Quanto a Colombo, não era nesse momento um “plebeu iletrado e tecelão”, mas sim um agente comercial de uma das mais poderosas casas comerciais genovesas que dominava o comércio do açúcar da Madeira. Neste contexto, Colombo tinha estatuto.
Quanto aos documentos que menciona, agradeço ter explicitado o seu raciocínio.
O documento Assereto foi efectivamente identificado nos inícios do século XX, quando se debatiam estas questões. Estranho é colocar em causa essa descoberta, levantando suspeita, como outros fizeram, sobre o momento do seu aparecimento. Parece-me natural que documentos sobre determinadas temáticas apareçam quando os assuntos se encontram a ser debatidos. Relembro, por exemplo, que o historiador José Manuel Garcia identificou e publicou, em 1994, a minuta original do Tratado de Tordesilhas, na Biblioteca Nacional de Portugal, que se desconhecia existir. Tendo em conta que tal aconteceu no ano das comemorações dos 500 anos do dito Tratado, deveremos duvidar da sua veracidade? Ou, como explica o próprio, tê-lo-á encontrado porque procurava documentação sobre essa temática no âmbito da exposição que estava a organizar, intitulada O Testamento de Adão? Quanto ao que afirma sobre a “coincidência” do documento precisar a idade de Colombo, este vai ao encontro de outro documento notarial: o de 31 de Outubro de 1470, onde Colombo se identifica com 19 anos de idade. Por isso, os dois documentos complementam-se, apontando o seu nascimento para 1451, não existindo “arbitrariedade” da data do seu nascimento, conforme faz crer.
O jornalista Rodrigues dos Santos põe, então, em causa a validade do documento porque “não passa de uma minuta em folhas sem a assinatura do declarante e do notário”. Tal afirmação carece de total avaliação do documento do ponto de vista da diplomática. De facto, o documento é perfeitamente válido, pois faz parte de um conjunto documental maior e não existe no vazio. O Assereto é um documento notarial da autoria do notário Gerolamo Ventimiglia, cujo trabalho está atestado em Génova entre 1466 e 1490. Existem quatro códices, ou conjuntos documentais, deste notário no Archivio di Stato di Genova, onde se insere o documento de 1479 que estamos a discutir. E dentro desta produção, o Assereto é perfeitamente igual a outros tantos produzidos à época, quer por Ventimiglia, quer por outros notários. Trata-se, conforme parece, dos livros de notas dos próprios notários, para registo pessoal, daí não serem assinados directamente. Para o confirmar basta olhar para documentação de Génova referente a Colombo, publicada, em Roma, em 1993, na Nuova Raccolta Colombiana. Encontrará aí muitos actos notariais registados precisamente da mesma forma que o Assereto, com o mesmo protoloco de abertura e fecho do documento, sem as formas de validação que acha serem indispensáveis. Segundo o seu raciocínio, toda essa documentação é, então, falsa ou inválida? Ainda sobre o facto de Colombo não referir a sua paternidade neste documento, tal não suscita estranheza, pois não existiam regras rígidas sobre o assunto nesta tipologia documental. Mas para o saber seria necessário conhecer mais documentação da época do que apenas aquela relacionada com Colombo.
Acerca do documento da instituição do Mayorazgo (que pode ser traduzido como morgadio, em português) de 1498, o jornalista José Rodrigues dos Santos levanta uma série de dúvidas. O eventual problema deste documento é que não se trata de um documento original, mas sim de uma cópia. E mesmo esta cópia revela ter sido produzida sobre uma minuta do mesmo e não sobre a versão final do documento. Isto explica que a minuta terá sido redigida antes da morte do príncipe Juan, e daí a cópia mencionar este príncipe como se ainda estivesse vivo. O facto de a cópia ter sido produzida com base numa minuta não causa qualquer estranheza, ao contrário do que poderá alegar, pois tudo se enquadra nas práticas da época. E o documento foi revogado por um segundo testamento, de 1502, e pelo testamento final, de 1506 (excepto no que diz respeito à instituição do próprio morgadio, mas essa é outra conversa). E é por causa destes documentos posteriores que em 1579 o Tribunal do Consejo de Indias não aceitou a validade do de 1498. Para ser ainda mais rigoroso, o documento de 1498, entregue ao Tribunal, tinha uma anotação autógrafa do próprio Colombo a dizer “no valga esta escritura”: não por ser falso, mas porque já tinha sido substituído pelas versões actualizadas do testamento de 1506. Também é falso que o documento só terá aparecido em 1578: a sua existência é atestada por um documento de 1501, assinado pelos Reis Católicos, onde se menciona explicitamente a escritura de morgadio realizada, em 1498, por Colombo. Acrescento mais que as disputas sucessórias dos descendentes de Colombo duraram séculos. A primeira deu-se em 1508-1535, a segunda em 1578, e depois disso ainda se encontram processos abertos em 1622-1623, 1627, 1651-1652, 1655-1656, 1659, 1661, 1664 e 1790. E em nenhum destes processos é posta em causa a veracidade do documento de instituição do morgadio, de 1498. Está isto claro?
Nesta linha, volto a convidar o jornalista Rodrigues dos Santos a consultar a documentação da época, publicada por Consuelo Varela e Juan Gil ou a já mencionada colectânea publicada em Roma. Toda a argumentação dos defensores do Colombo português ou dos dois Colombos assenta na constante descontextualização da documentação, quando esta deve ser analisada em conjunto com toda a restante produzida no seu período.
Portanto, sobre o Documento Assereto e o Mayorgazo estamos definitivamente conversados.
Aproveito para dar conta que se mencionei as 119 referências documentais é porque, como disse, foram arroladas pelo historiador Luís Filipe Thomaz. Na realidade, grande parte dos argumentos que aqui apresentei foram já ordenados na sua obra, que se encontra disponível online, gratuitamente, na página da Academia de Marinha. Leia a obra e terá a resposta.
Por fim, sobre as minhas afirmações sobre a irrelevância da naturalidade de Colombo, reitero o que disse. O que está em causa não é se a sua naturalidade altera a História. É qual o papel do historiador neste debate. Mais do que oferecer uma narrativa romanceada do passado, como por vezes se pensa, o trabalho do historiador permite olharmos para o passado e compreender como chegámos até aqui. Este exercício é feito de forma séria, a partir de uma análise rigorosa e crítica das fontes, da sua tipologia e contexto de produção, da sua análise do ponto de vista da paleografia e da diplomática, bem como do conhecimento sobre estas práticas de escrita, sobre a sociedade da época e das suas estruturas culturais, económicas, políticas, entre tantos outros campos, e da própria historiografia. O problema é o frequente crédito e atenção dado a quem se manifesta sobre a História, sem qualquer perspectiva crítica, seleccionando criteriosamente os temas, as fontes e as formas como as apresentam.
Contudo, dou-lhe razão quando diz que a conversa vai longa e também não a irei estender mais. Não precisamos de viajar na maionese para conhecer a biografia de Cristóvão Colombo, o genovês, que chegou às Américas em 1492.
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