O historiador Lee de Jesus fez na Visão uma segunda intervenção sobre as minhas afirmações relativas a Cristóvão Colombo e sobre as origens marxistas do fascismo.
Agradeço-lhe os esclarecimentos quanto às suas intenções, esclarecimentos nos quais acredito. Por vezes nas redes sociais as pessoas fazem comentários não devidamente ponderados que de repente adquirem vida própria. Permita-me, porém, alguns reparos quanto aos seus esclarecimentos.
Em primeiro lugar, constato que, nesta segunda intervenção, não reiterou nem fundamentou as críticas que originalmente proferiu às minhas declarações sobre as origens marxistas do fascismo. Fez bem, porque esta matéria é embaraçosamente fácil de demonstrar.
Perdoar-me-á, no entanto, por não deixar passar em claro o que me pareceu ser uma desastrada tentativa de desqualificação da tese que defendi na Sorbonne em co-tutela da Universidade de Paris-Panthéon-Assas e Universidade Aberta, quando indicou que ela foi feita em Estudos Globais e Ciências da Informação e Comunicação, e não em História.
Acaso acha que as únicas teses aceitáveis na academia são as tiradas em História? Ou que há falta de rigor nas outras disciplinas? Pode não ser isso o que quis dizer, mas é o que ficou implícito. Devo esclarecê-lo que o júri internacional que avaliou a tese era transversal a várias disciplinas, pois a temática do fascismo não é um exclusivo da historiografia e envolve outras áreas do conhecimento. Tendo dito isso, o júri era maioritariamente constituído por académicos na área da História e da Ciência Política, pelo que na avaliação da tese foram necessariamente aplicados os critérios destas disciplinas.
Assim, Marc Lazar, ex-diretor do Centro de História de Sciences Po e arguente da tese, é historiador; José Eduardo Franco, outro arguente da tese, é historiador; Fabrice d’Almeida, orientador da tese por parte de Panthéon-Assas, é historiador; e António Costa Pinto, membro do júri, é historiador e cientista político. Já João Relvão Caetano, orientador da tese por parte da Universidade Aberta, é cientista político, disciplina igualmente de grande relevância para o tema da tese. A presidente do júri, Valérie Devillard, é uma socióloga que dirige um departamento de investigação da Universidade de Paris-Panthéon-Assas, e Maria Clara Calheiros é catedrática em Direito e especialista em História do Direito.
Acaso acredita Lee de Jesus que algum destes académicos, a começar pelo ex-diretor do Centro de História de Sciences Po, deixaria passar em claro incorreções na metodologia da tese no que à crítica histórica diz respeito? Se tem qualquer dúvida, sugiro que pegue no telefone e fale com qualquer um deles para que o esclareçam quanto ao texto que tiveram de avaliar.
Mas esta conversa, para recuperar uma expressão que creio lhe ser cara, não passa de um “viajar na maionese”. O que interessa se a tese foi tirada em História ou em Estudos Globais ou em Ciências da Informação e Comunicação? Para quê tentar distrair com questões laterais que nada têm a ver com o problema de fundo? O que aqui realmente interessa é se alguma das muitas afirmações que proferi sobre as origens marxistas do fascismo é falsa. E, quando a conversa chegou à matéria de facto, a verdade é que não fez desmentido nenhum.
Escreveu Lee de Jesus que neste debate específico sobre o fascismo “é o papel do historiador que está aqui em causa”. Permita-me discordar. O que está realmente em causa é se é ou não verdade que o fascismo tem as suas origens no marxismo. Mais nada. Foi isso o que num primeiro momento tentou desmentir e foi essa tentativa que me levou a intervir, pois, como já deve ter percebido, sobre as origens marxistas do fascismo andamos há décadas a pisar os velhos terrenos do negacionismo.
Podemos, é certo, falar sobre o papel dos historiadores no esforço, que durou demasiado tempo e como se vê ainda perdura em Portugal, de ocultar as origens marxistas do fascismo. O próprio Renzo de Felice, o historiador oriundo do Partido Comunista Italiano que em 1965 começou a desenterrar em Itália toda esta questão incómoda, observou que, devido ao clima político e ideológico prevalecente, “naquela época não se podia dizer outra coisa”.
Lamento essa realidade obscurantista, pois concordará comigo que a historiografia devia ser capaz de se alhear das pressões políticas e ideológicas e concentrar-se na matéria científica independentemente das conveniências, mas compreendo que os ditames ideológicos travam realmente a investigação académica, como tão bem demonstrou Marc Ferro em Les tabous de l’histoire. Não foi Galileu, numa outra área, obrigado a negar a verdade científica só porque a Igreja o impôs? Reconheço por isso que De Felice tem infelizmente razão. Durante muito tempo, realmente “não se podia escrever outra coisa.”
Daí a importância do discurso artístico. No meu anterior texto já falei na forma como Marc Ferro ilustrou a importância dos romancistas e cineastas em romperem o silêncio sobre assuntos tão sensíveis que os historiadores, a comunicação social e a classe política não se atrevem a tocar. Foi isso o que fiz com a trilogia do Lótus. É que o negacionismo não existe apenas na questão do Holocausto e das mudanças climáticas. Existe também no estudo do fascismo. Se buscamos o conhecimento, não podemos consentir que na academia se pratique negacionismo nem que se tente intimidar quem quebre o tabu.
Agora, Cristóvão Colombo. Em primeiro lugar, fiquei sem perceber as suas dúvidas quanto às fontes secundárias neste contexto. É muito simples. Como sabe, uma fonte primária é aquela que produz informação praticamente em simultâneo com os acontecimentos que regista e dá a conhecer, ou que nos chega sem intermediários e como foi feita na altura; já os dados das fontes secundárias são elaborados a partir de fontes primárias e que, portanto, oferecem uma visão mediada, parcial ou tangencial dos acontecimentos originais.
Na questão da identidade de Cristóvão Colón (o apelido então e hoje em Espanha), a quem hoje chamamos Colombo, o problema das fontes primárias e secundárias é muito importante, dado o contexto histórico que a envolveu. No século XIX ocorreu um grande debate entre os historiadores espanhóis, que questionaram fortemente a origem genovesa de Colón, e os italianos, que a reafirmavam. Isto aconteceu no quadro da emergência dos nacionalismos, tendo a questão da identidade genovesa do descobridor da América extravasado a historiografia e assumido proporções políticas de defesa do “superior” interesse da nação.
Assim, à medida que os espanhóis iam detetando sucessivos problemas nos documentos “genoveses”, os italianos iam sempre respondendo com novos documentos que apareciam de repente, o que se afigura estranho e sobretudo, permita-me que acompanhe a opinião de Armando Cortesão, suspeito. Simon Wiesenthal, o famoso caça-nazis judeu, conta que falou com um historiador italiano sobre as origens de Colombo e ouviu esta resposta: “Pouco importa o que vier a descobrir. O essencial é que Cristóvão Colombo não se torne espanhol”. Ilustra bem o espírito do debate e imagine-se a confiança que dá quanto à solidez dos documentos italianos…
Quando os espanhóis por fim tudo desmontaram, os italianos tiraram mais um coelho da cartola e apareceram em 1904 com o famoso Documento Assereto que fazia a ligação entre o Cristoforo Colombo genovês e o Cristóvão Colón ibérico.
O debate adquiriu dimensões nacionalistas tão intensas que o coronel Assereto foi até condecorado em Itália e promovido a general pelo seu “feito d’armas” no “campo de batalha” contra o “inimigo”, os historiadores espanhóis. Tudo isto contamina, como é evidente, a credibilidade dos documentos que apareceram neste contexto. Ou acha mesmo que documentos produzidos com a intenção explícita de nacionalisticamente provar a origem itálica de Colón são de facto sólidos?
Fala-me em “119 referências documentais dos séculos XV e XVI que atestam a naturalidade genovesa de Colombo”, mas como não as discrimina não tenho maneira de as verificar (e reconheço que nem, na verdade, tal seria possível num espaço destes).
Lendo esta sua segunda intervenção, constato que terá “todo o prazer” em ouvir-me falar sobre o Mayorazgo e o Documento Assereto, o que me faz presumir que me pede esclarecimentos quanto aos problemas que contaminam estes dois documentos. Se assim é, e como a isso me comprometi, terei de lhe fazer a vontade.
A primeira coisa que é preciso perceber é que ninguém põe em causa a existência de um Cristoforo Colombo genovês. Esse homem, que os documentos referem como um plebeu iletrado e tecelão, existiu mesmo. Também ninguém põe em causa a existência de Cristóvão Colón, o almirante ibérico que descobriu a América e vice-Rei das Índias. Esse homem, que era casado com uma mulher da alta nobreza portuguesa e sabia matemática e latim mas não era capaz de falar italiano, também existiu mesmo.
O problema dos historiadores italianos era demonstrar que Colombo era Colón. Não só os historiadores espanhóis tinham desmantelado os documentos “genoveses” como a versão do plebeu iletrado se ter casado no Século XV com uma mulher da alta nobreza e tornado almirante e vice-rei não fazia sentido, pois um casamento com uma nobre e cargos dessa importância estavam reservados a nobres, não a plebeus. Se hoje a mobilidade social ainda é difícil, imagine-se então no Século XV. Daí a relevância do Mayorazgo e do Documento Assereto, pois são os únicos que fazem inequivocamente a ligação entre o plebeu Colombo e o almirante Colón.
O primeiro a aparecer foi o Mayorazgo, ou morgadio, um testamento onde Colón pediu que se respeitassem os direitos do seu filho português Diogo. Nesse Mayorazgo, Colón escreveu que nasceu em Génova.
Agora os problemas. O Mayorazgo, datado de 1498, era dirigido aos reis católicos e ao seu filho primogénito, o príncipe Juan. O problema é que o príncipe Juan tinha morrido em 1497, um acontecimento muito comentado no país e que levou a 40 dias de luto nacional. Colón não podia desconhecer esta morte.
Isto suscita perguntas. Como pode Colón ter feito um testamento dirigido a um príncipe que morrera no ano anterior? E como podem os notários ter aceitado tal documento? Isto é um anacronismo que abala a credibilidade do Mayorazgo.
Mas há mais. Sendo um testamento, esperar-se-ia que o Mayorazgo aparecesse pouco depois da morte de Colón, como é normal nos testamentos. Se eu morrer hoje, as minhas filhas não vão ler o meu testamento só daqui a 70 anos, presumo eu. O problema é que Colón morreu em 1506 e o Mayorazgo só apareceu mais de 70 anos depois, em 1578. Isto não é normal.
E apareceu como? Surgiu num processo judicial sobre a herança de Colón, e convinha a quem o apresentou, para reclamar a herança do navegador, que o documento dissesse que ele era de Génova.
Ademais, o Tribunal das Índias que julgou o caso determinou que o Mayorazgo era de facto uma falsificação. Está isto claro? Uma falsificação. Pois é num documento declarado falso por um tribunal que assenta a “prova” de que o plebeu e iletrado Colombo era o almirante letrado Colón.
Como é evidente, todos estes problemas foram apontados aos historiadores italianos. A causa de Itália ficou em grande perigo. Eis então que, na hora mais grave da tese genovesa, aparece de repente o coronel genovês Ugo Assereto, qual D. Sebastião italiano a emergir das brumas a segurar na mão, como Camões no naufrágio, o documento milagroso que iria salvar a honra nacional.
O Documento Assereto é uma ata notarial datada de 25 de agosto de 1479 que regista a partida de Christophorus Columbus, de 27 anos, no dia seguinte para Lisboa. Estava feita a ligação. Colombo era mesmo Colón. O texto tinha a conveniente vantagem de ser muito curto, o que dificultava o aparecimento das aborrecidas incongruências e anacronismos.
Mas mesmo assim há problemas com este documento. O primeiro é que ele diz que Colombo tinha 27 anos, o que a 25 de agosto de 1479 o punha a nascer em 1451, justamente a data estabelecida quase arbitrariamente pelo Congresso dos Americanistas para o nascimento de Colón.
Leia-se, a este propósito, Armando Cortesão: “É extraordinário que documento tão importante, condizendo tão bem com o testamento de Colombo e outros documentos conhecidos e confirmando com tanta precisão a idade, por suposição, assente no Congresso dos Americanistas, em 1900, existisse nos rebuscadíssimos arquivos de Génova, explorados por centenas de ávidos investigadores no respeitante ao período colombino, de mais a mais entre papéis notariais, sem até então ninguém reparar nele e em tão importante declaração. Desastrosa coincidência! Em 1900 o Congresso dos Americanistas fixa o ano de 1451 como data de nascimento de Colombo e logo em 1904 aparece um documento de 1479, onde o próprio diz ter 27 anos e tudo o mais coincide com outros dados por muitos considerados como pouco seguros (…) A indústria de falsificação de documentos ‘antigos’ atingiu tal perfeição que nesse capítulo nada nos surpreende.”
Ademais, cruzando-se duas referências do almirante Colón com outra do seu filho, é possível deduzir que o navegador não nasceu nesse ano. Ora se o plebeu genovês Colombo nasceu em 1451, então ele não pode ser o almirante ibérico Colón.
Por fim, de registar que o Documento Assereto não passa de uma minuta em folhas sem a assinatura do declarante e do notário e sem referir a paternidade de Cristoforo Colombo, o que não é normal neste tipo de documentos naquela época.
Portanto, sobre o Documento Assereto estamos conversados.
Lee de Jesus sugere a possibilidade de se “passar a pente fino a documentação colombina publicada por Consuelo Varela e Juan Gil”. O problema é que, fazendo-lhe a vontade e consultando Consuelo Varela, no seu livro Cristóbal Colón y la construcción de um mundo nuevo, constata-se que, a propósito de Colón, ela escreveu que “desconhecemos o lugar onde nasceu”. Ou seja, em defesa da tese genovesa, Lee de Jesus está a convidar-nos a consultar uma historiadora que admite abertamente que não se sabe se Colón era ou não genovês, pois “desconhecemos o lugar onde nasceu”!
Não sei o que mais diga.
Talvez sugerir a leitura da tese de doutoramento de Manuel Rosa, por exemplo. Confesso que não a li, mas acredito no professor João Paulo Oliveira e Costa, historiador da Universidade Nova de Lisboa e perito nos Descobrimentos, que escreveu: “no estudo recente de Manuel Rosa, que, respeitando escrupulosamente as fontes, deixa clara a impossibilidade de Colón ter nascido no seio de uma família de tecelões genoveses.”
Já agora, tenho de dizer que não consigo acompanhar a afirmação de que “a relevância da naturalidade de Colombo é praticamente nula”. Na verdade, fico até muito surpreendido com esta afirmação. O que pretende dizer com isto? Que saber que ele era português ou genovês não altera nada? Mas o conhecimento, qualquer que ele seja, nunca altera nada no passado. Isso é válido para tudo, pois nunca podemos mudar o passado. O que podemos mudar, isso sim, é o nosso entendimento do passado. Saber quem era Colón altera evidentemente o nosso conhecimento do passado e nem percebo como se possa negar esta evidência nem a sua relevância. Aliás, se o conhecimento do passado tem uma relevância “praticamente nula”, então para quê estudar o passado? Mais: para quê a própria profissão de historiador?
Em conclusão, quando eu disse no Jornal 2 que faltam provas sólidas à tese genovesa, declaração que tanto indignou Lee de Jesus ao ponto de declarar aos quatro ventos que estava em causa uma “vergonha nacional”, mais não fiz do que enunciar uma evidência.
Quanto aos indícios da tese portuguesa… por favor, não está à espera que eu faça aqui um spoiler de O Codex 632, pois não? A conversa já vai longa e não vou estendê-la ainda mais. Leia a obra e terá a resposta.
Resta-me agradecer a Lee de Jesus o tom cordato da nossa conversa, sobretudo porque mostrou que é possível divergirmos sem nos insultarmos. O tema é apaixonante e não é por acaso que o romance que publiquei há 18 anos foi traduzido em todo o mundo e pode agora ser visto em série televisiva na RTP.
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