Tudo o que guardamos em nós, guardamo-lo em sítios diferentes do cérebro. Desde que nascemos – aliás, desde antes de nascermos.
Por exemplo, a observação de um carro que desce uma rua. O som da sua aproximação é enviado para o córtex auditivo. A sua imagem vai ser decomposta pela retina e enviada por “correio separado”, em diferentes “pacotes”, para o córtex visual, na região “occipital”. Umas vias são ativadas pela cor do carro, outras pela sua forma e outras só transmitem a informação do movimento. Esta configuração única daquele carro, reunida no córtex, permite-nos reconhecê-lo como algo que se aproxima de nós ao mesmo tempo que o volume de som cresce. É uma forma distribuída, poupando circuitos, que o cérebro tem de funcionar.
Ativamos de modo simultâneo, em constelação, todos esses dados dispersos, a reconstrução numa só imagem da cor, da forma e do movimento, o som recebido no córtex, a avaliação da sua localização no córtex “parietal”, e a emoção que despertou no córtex “límbico”. A seguir, por uns instantes, noutra zona, na parte da frente, no córtex “pré-frontal”, avaliamos o conjunto disto tudo, a sua importância, comparando com outros que já vimos ou experimentámos, na chamada memória de trabalho, a curto prazo, que rapidamente se desvanece. Para conservar essa recordação, guardamos ainda noutra região, no “hipocampo”, os códigos dessa ativação, o que permite reconstruí-la quando vier a propósito ou for precisa.
Noutras estruturas ainda, a memória dos gestos. Parece complicado, mas poupa recursos. Como peças de um lego. A mesma coisa pode ser usada para situações diferentes. O todo, ou parte dele, pode ser recuperado pelas circunstâncias. Quem é esta pessoa, qual o caminho de regresso, como tocar um instrumento, utilizar grafemas na leitura ou resolver equações. Memórias a curto prazo, efémeras, e a longo prazo, do que são as coisas comuns a todos e do que nos aconteceu só a nós, conscientes ou inconscientes. Tudo disperso ocupa menos espaço, e pode ser utilizado para outros fins.
Mas, embora em números astronómicos, os circuitos são limitados e não poderiam representar tudo o que vivemos, acordados ou a dormir. Temos de perder alguma informação para guardar a que for mais importante para nós no presente. Abandonar uns circuitos e criar outros, representando novos objetos ou situações.
O saber ocupa lugar. O sono, por que passamos todos os dias, é fundamental para essa constante atualização do que somos. Porque “somos aquilo que fomos”. E o que fomos tem de ir mudando, porque o nosso corpo muda e tudo muda à nossa volta: as pessoas, os sítios, as coisas. Tal como o corpo, sem nos darmos conta, os circuitos mudam. O arquivo no cérebro fica diferente para mantermos o essencial: a consciência de nós, a identidade.
Assim dispersa por localizações cerebrais distantes, a informação fica dependente do grau de maturação dessas zonas para poder ser guardada. Ao nascer, temos já maduros os circuitos que representam as emoções. Mas o hipocampo e as suas memórias a longo prazo, só por volta dos 4 anos. É por isso que as crianças podem ter medo sem conseguirem saber porquê.
Com 6 meses, objetos novos (pessoas…) que veem pela primeira vez são recordados durante 24 horas; com 10 meses, já se “mantêm” até depois do ano. São memórias a prazo, mas ainda assim efémeras. O hipocampo ainda não amadureceu. Não podemos, adultos, recordar o que nos aconteceu antes dos 4 anos. Tudo o que lembramos foi reconstruído depois, são falsas memórias. Também precisamos delas para manter uma visão coerente do nosso passado. Ir esquecendo as perdas, as pessoas queridas que desapareceram. Para seguir em frente.
E é em função do corpo e das suas necessidades que esse esquecimento quotidiano – essa modificação de circuitos – ocorre. Não o conseguir fazer, não conseguir esquecer é, na minha opinião, o que acontece no autismo. Dificuldade em mudar o reportório.
De facto, somos pessoas diferentes todas as manhãs, ao acordar. E isso é bom.
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