Muita coisa mudou nos últimos 20 anos. Instado a defini-los, e porque todos somos um singularíssimo percurso, cada um de nós faria, com toda a certeza, uma súmula diferente. Pelo meu lado, talvez escolhesse fazer um alerta. Talvez escolhesse dizer que foram 20 anos de contínua degradação de um pilar vital para a sustentabilidade de qualquer sociedade demoliberal: o espaço do debate racional, da deliberação tranquila, da divergência educada, da permanente tentativa de edificação dos consensos possíveis.
Podemos encontrar razões múltiplas para este estado de coisas. Podemos culpar uma globalização que não soube cuidar minimamente dos seus perdedores. Podemos apontar o dedo ao crescimento, no interior dos estados mais prósperos, dos níveis de desigualdade mais extremos. Podemos sublinhar as angústias das gerações mais novas a quem vamos deixar em herança um planeta com desequilíbrios profundos. Podemos sublinhar a influência dos novos espaços de comunicação que premeiam o confronto e a tribalização em detrimento da edificação de um chão comum. Podemos nomear os medos do amanhã e do outro. Podemos escolher novos e velhos problemas. Podemos sobretudo acusar os que, de um e de outro lado do espetro político, têm deliberadamente explorado todos estas disfunções, bem como os receios, perplexidades e angústias que naturalmente suscitam, para sobre elas erigir projetos de poder pelo poder.
Podemos, em suma, divergir na busca arqueológica das causas. Mas julgo que é difícil não aceitar o diagnóstico. As nossas sociedades são hoje fraturas expostas. O discurso público radicaliza-se. A política tribaliza-se e regressa a um maniqueísmo pré-iluminista. O espaço do debate racional dá lugar a um confronto binário próprio do mundo digital. O espaço da moderação e da construção de consensos atrofia-se.
Ora, como Lincoln disse um dia, “A house divided against itself cannot stand” (“uma casa dividida não pode permanecer em pé”, em tradução mais do que livre). É, pois, da erosão dos alicerces da nossa casa democrática que estamos a tratar.
Chego, pois, com toda esta longa conversa, ao ponto onde verdadeiramente quero chegar. Permitam-me uma inflexão que é só aparente. Escrevo hoje a minha última crónica na VISÃO. Foram mais de 20 anos de colaboração ininterrupta e muito gratificante. Entrei a convite do Carlos Cáceres Monteiro, trabalhei com o Pedro Camacho, com o João Garcia e agora com a Mafalda Anjos. De todos, dos que partiram, dos que seguiram outros caminhos, dos que continuam todas as semanas a fazer e a editar a revista, guardo as melhores recordações. Todos me fizeram sentir em casa. Mais relevante, e para mim mais revelador do que sempre foi a VISÃO, todos me trataram com a mesma profissional cordialidade em todas as minhas “encarnações”. Dos tempos em que trabalhávamos no mesmo grupo, passando pelos tempos em que o dirigi, aos tempos em que a vida me levou por outros caminhos profissionais.
Muita coisa mudou radicalmente em 20 anos, como acima escrevi. Mas nem tudo, felizmente. E se alguma coisa posso testemunhar, do alto da minha veterania (se é que, imodestamente, posso falar assim), é que a VISÃO não mudou naquilo que mais importaria conservar. Mudou o contexto, mudou o mercado, mudaram os diretores, mudaram os acionistas, mudou parte da redação, mudam também saudavelmente os cronistas, mas a VISÃO continua a ser o espaço de cordialidade, de saudável confronto de ideias, de racionalidade e sobretudo de imensa liberdade que sempre conheci.
À sua maneira, num contexto tecnológico muito desafiante, num contexto de dificuldades que é comum a toda a comunicação social portuguesa, num contexto que cada vez mais premeia o ruído histriónico e a exploração gratuita da polarização, a VISÃO continua, no fundo, a cuidar de um dos mais importantes alicerces da nossa casa comum.
Por tudo isso, mas também por me terem dado a oportunidade de fazer parte deste projeto, a todos deixo um agradecimento emocionado.
Até sempre.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.