Na semana passada, ao sabor da minha curiosidade sobre as coisas de que gosto e por causa de um amável convite dos organizadores, dei comigo a moderar o painel do terceiro dia de trabalhos de um congresso sobre futebol. Instintivamente, a ideia de um grupo de pessoas sentadas numa sala a ouvir falar interminavelmente sobre qualquer coisa não me é atractiva. Mas, às vezes, há boas surpresas; foi esse o caso.
É por ser simples e directo, de regras claras (embora, como veremos, de aplicação não poucas vezes obscura), e prática acessível, na rua, no pátio da escola, no jardim das traseiras, que o futebol se converteu numa paixão universal. E, como tal, gerou uma espécie de «ciência popular», como lhe chamou, no congresso AllFootball, o director técnico do Clube Atlético Paranaense, António Carlos Gomes. É uma «ciência» feita de intuições e emoção, mitos e crenças, de bluff e demagogia, de «esquemas» postos ao serviço dos interesses políticos e económicos: é fácil, é barato – e dá milhões.
O dirigente vindo do Paraná contou os esforços que vêm sendo feitos para trazer aquilo a que chamou a «ciência académica» ao mundo do futebol. A resistência dos «cientistas populares» à intrusão das ciências (a biologia, a biomecânica, a sociologia, a psicologia) é enorme; a paciência dos «científicos» tem de ser de chinês. António Carlos Gomes, doutorado em Antropologia e Ciências do Treino, tem vindo a aplicar os métodos e disciplinas científicas à organização do «seu» Atlético Paranaense: em 2001, a equipa sagrou-se campeã do Brasil.
Deve ser por causa da ostensiva hegemonia, entre nós, dessa percepção do futebol como «ciência popular» que o último dia do congresso se desenrolou perante uma magra plateia que não atingia as duas dezenas de pessoas. «Mas o número de inscritos era muito maior», dizia-me, espantado, um dos organizadores. No mundo do futebol português, todos nasceram ensinados: entre recorrer a um psicólogo ou ir à bruxa muitos (ir)responsáveis preferem a segunda via. Mesmo que os resultados continuem a não aparecer.
Contra este deserto insurgiu-se um árbitro internacional, o conhecidíssimo Vítor Pereira. Couberam-lhe, aliás, algumas das intervenções mais interessantes do congresso, na defesa da profissionalização dos árbitros (que há muito me parece óbvia), na interrogação sobre a ausência de qualquer representante federativo, na denúncia da falta de condições para que os árbitros exerçam condignamente a sua missão: a de julgar com rigor, isenção e competência, a bem do jogo e do espectáculo.
A mim, sempre me interessou, no futebol, a figura do árbitro. Em primeiro lugar, porque não consigo perceber a motivação da tarefa, para mais nas condições de perigosidade em que a função vem a ser exercida no futebol moderno. Mas é verdade que eu também nunca fui sensível à vontade de ser juiz que animava muitos dos meus colegas de Direito; nesta matéria das vocações (e provavelmente só nesta), gostos não se discutem. Mas, ao longo dos anos, tenho vindo a interrogar-me sobre o estatuto do juiz no jogo e sobre a forma como os organismos internacionais (não) têm vindo a ajudar os árbitros a cumprir melhor a sua função.
A evolução das leis do futebol tem sido lenta e não poucas vezes contraditória. O consultor do International Board e da FIFA George Cumming apresentou algumas das mais recentes alterações, como a penalização com cartão amarelo pela simulação de falta; ora, a simulação é, na maior parte das vezes, uma figura de fronteira e o cartão amarelo a mesma penalização que se atribui à falta cometida com contacto físico, que me parece indiscutivelmente mais grave. A questão que aqui se coloca é a da proporcionalidade da pena, ou seja, da sua adequação à gravidade da falta. Além disso, Cumming afastou veementemente a possibilidade de recurso a um juiz de bancada com acesso à repetição vídeo dos lances duvidosos, afirmando-se não convencido com a sua utilização na recente Taça do Mundo de Rugby. É uma questão de opinião: eu vi a maior parte dos jogos da Taça do Mundo e achei muito proveitoso o recurso ao vídeo, que é excepcional e tem que ser expressamente pedido pelo juiz de campo.
Mas foi de Vítor Pereira que ouvi isto: os árbitros portugueses, que não têm um relvado para treinar (isto é, que não treinam nas condições reais em que têm que agir), sofrem de overtraining. Junte-se a isto a pressão provocada pelo facto de terem que acumular com os treinos (4 ou 5 por semana), as actuações e a recuperação de lesões, e ainda as suas obrigações profissionais, e imagina-se o estado em que alguns árbitros entram em campo.
Não sei se Vítor Pereira tem razão em tudo o que diz. Mas, como fervoroso adepto de futebol, acho que é preciso prestar-lhe atenção e olhar para o árbitro como o 23.º jogador, sem o qual o jogo não começa e de cuja performance o espectáculo se ressente. Assim tivesse lá estado gente para ouvi-lo.
Crónica de António Mega Ferreira de 11 de Dezembro de 2003
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