“Os teus ossos estão vazios de medula, o teu sangue é frio” – é uma frase da quarta cena do Terceiro Ato de A Tragédia de Macbeth, de William Shakespeare, proferida por Macbeth quando este julga vislumbrar o fantasma do falecido Banquo (assassinado a mando do próprio Macbeth). Esta terá sido uma das primeiras referências à importância da medula óssea na produção de elementos do sangue, e da sua menção como evidência de vida e de vitalidade – os “fantasmas” não têm medula, nem sangue. Considerada durante séculos uma fonte de nutrientes para os ossos, a medula óssea é onde as células sanguíneas se originam, diferenciam e desenvolvem. Mas é onde se podem também desenvolver determinados tipos de cancro.
É na medula óssea que são produzidos os glóbulos brancos (leucócitos), os glóbulos vermelhos (eritrócitos) e as plaquetas, constituintes celulares do sangue, num processo chamado hematopoiese. Por dia, a medula óssea de uma pessoa adulta produz cerca de 200 mil milhões de glóbulos vermelhos, 10 mil milhões de glóbulos brancos e 400 mil milhões de plaquetas. Esta fábrica celular absolutamente espantosa no seu rigor, precisão e capacidade produtiva, foi formalmente reconhecida somente no final do século XIX. Das inúmeras contribuições científicas da época, destaque deve ser dado aos trabalhos de Ernst Neumann (1834-1918) e Giulio Bizzozero (1846-1901), os primeiros a propor a medula óssea como o local onde se desenvolvem as células sanguíneas, começando por estudos sobre a produção de glóbulos vermelhos (eritropoiese). William Osler (1849-1919), ao ter identificado pela primeira vez as plaquetas e sugerido que a medula fosse o seu local de origem, confirmando e reforçando as observações realizadas pelos colegas, também merece menção. Mas Ernst Neumann, notável médico-investigador, propôs ainda a existência de uma “célula estaminal hematopoiética”, residente na medula óssea, como sendo a origem (celular) dos diferentes elementos do sangue.
Foi nesta altura que Virchow (Berlim) e Bennett (Edinburgo) sugeriram, em 1845, que as leucemias fossem uma identidade clínica própria, ao identificarem e caracterizarem os primeiros doentes com leucemia. Rudolf Virchow, médico e investigador alemão, propôs então o termo “sangue branco” para explicar a predominância de glóbulos brancos no sangue de pacientes, e mais tarde utilizou o termo “leucemia” (“leukaemia”, palavra originária do Grego “leukos”– branco e “haima” – sangue) para doentes com diferentes tipos de leucocitoses (excesso de glóbulos brancos no sangue). Importa ainda realçar que foi o incontornável Neumann, em 1878, o primeiro a postular que as leucemias teriam origem na medula óssea.
A noção de que as leucemias também eram cancros foi aceite somente nos anos 30 do século XX, após demonstração experimental da sua natureza maligna, através da indução de leucemias em modelos animais utilizando carcinogéneos
No entanto, a noção de que as leucemias também eram cancros foi aceite somente nos anos 30 do século XX, após demonstração experimental da sua natureza maligna, através da indução de leucemias em modelos animais utilizando carcinogéneos. Nas primeiras décadas do século XX, já tinham sido definidas as leucemias “agudas” e as “crónicas”, tendo por base critérios clínicos. As primeiras têm uma apresentação clínica agressiva com muitos glóbulos brancos em circulação, associados a esplenomegalia (baço aumentado de volume) entre outros aspetos clínicos e “outcome” negativo para os doentes, ao passo que as leucemias “crónicas” apresentam comummente um quadro clínico mais “indolente” durante meses e por vezes anos, antes de passarem a uma fase aguda semelhante às leucemias agudas, com um resultado clínico semelhante. O tratamento destas doenças, nomeadamente das leucemias crónicas, era então feito com acesso a regimes de quimioterapias intensivas como a mostarda nitrogenada, derivada do “gás mostarda”, com resultados clínicos globalmente modestos. Só décadas mais tarde se utilizou o transplante de medula óssea como tratamento para alguns tipos de leucemia. No início do século XX, as leucemias eram, independentemente do tipo, cancros essencialmente incuráveis e fatais.
Na segunda metade do século XX, dá-se uma autêntica revolução no diagnóstico e no tratamento de uma das leucemias crónicas mais comuns, a leucemia mieloide crónica (CML). Nesta altura, já se conseguia definir os tipos de glóbulos brancos, dividindo as leucemias em mieloides e linfoides. O avanço da citogenética, o estudo detalhado dos cromossomas, nos anos 60 do século XX, levaram à descoberta, por Peter Nowell e David Hungerford, de um cromossoma (o 9) anormalmente pequeno nas células tumorais de doentes com CML. Este foi denominado cromossoma “Filadélfia”, por ter sido descoberto precisamente nesta cidade americana. A importância desta descoberta foi enorme, em primeiro lugar por ter sido a primeira demonstração de que uma só alteração molecular e concretamente uma que ocorre durante a separação dos cromossomas na divisão celular, poderia ser suficiente para gerar um cancro. Essa alteração molecular ocorre nas células estaminais hematopoiéticas, residentes na medula óssea, dos doentes com CML. Mais tarde, Janet Rowley, investigadora da Universidade de Chicago, percebeu que na verdade ocorria – nas células de doentes com CML – uma troca de material genético entre os cromossomas 9 e o cromossoma 22, resultando na formação de um gene fusão (o gene BCR-ABL) cuja proteína tem a capacidade de ativar várias vias de sinalização que resultam na transformação das células estaminais em células malignas, promovendo a sua expansão e produzindo uma leucemia mieloide crónica. Finalmente, Brian Drucker, na Universidade de Saúde e Ciência do Estado de Oregon, descobriu, nos anos 90 do século XX, um fármaco que bloqueava especificamente a ação da proteína BCR-ABL, um inibidor denominado Imatinib. A ação deste inibidor, dirigido contra uma alteração molecular presente apenas nas células malignas dos doentes com CML, é clinicamente um sucesso, resultando no aumento de sobrevivência e em muitos casos na cura destes doentes. A utilização de inibidores moleculares dirigidos contra uma alteração molecular específica (a BCR-ABL, no caso da CML) criou todo um campo de estudo para a procura de outros alvos e de desenvolvimento terapêutico em busca de terapias dirigidas, revolucionando a terapia do cancro.
Desde o fantasma de Shakespeare até aos dias de hoje, e devido ao esforço de um número vasto de cientistas, muito se avançou no estudo da medula óssea e nas doenças que afetam este órgão essencial. A investigação científica também resolve problemas seculares.
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