Tenho, devo confessar, muita dificuldade em fazer análise política em torno do tema dos incêndios. Desde logo porque estamos a falar de uma tragédia. Felizmente, não de uma tragédia com a dimensão da de 2017, mas, ainda assim, uma tragédia. E a verdade é que tenho pudor em fazer comentários em cima de desgraças de qualquer tipo. Não menos importante, quando tentamos fazer a análise de uma ocorrência, de um incêndio ou mesmo de uma “temporada” de incêndios em concreto, depressa nos damos conta da confluência de muitos fatores, naturais, humanos, políticos, que torna difícil o estabelecimento de causalidades definitivas e inequívocas. Não me verão, portanto, entretido a fazer o exercício demagógico de afirmar que este ou aquele incêndio em concreto, neste ou naquele parque natural específico, poderia ter sido evitado ou mais bem combatido.
Dito isto, devo confessar que tenho muita dificuldade em aceitar que se faça o exercício oposto. E o exercício oposto é sugerir que nos devemos resignar a ser o País com mais área ardida da União Europeia (em percentagem do território), que há pouco ou nada que as políticas públicas possam fazer para contrariar a inclemência dos fenómenos naturais ou, mais escabroso, sugerir, como o fez há dias a secretária de Estado da Administração Interna, que devemos dar-nos por satisfeitos porque os algoritmos do Governo permitem afiançar que só ardeu 70% da área que era suposto ter ardido (!).
Entendamo-nos. O PS não começou exatamente ontem a governar o País. Governa-o ininterruptamente desde 2015 e dirigiu-o durante 15 dos últimos 22 anos. Não seria saudável que, em vez de encomendar mais um estudo que estará pronto lá para as calendas, quando o tema dos incêndios tiver saído da agenda mediática, estivesse disponível, desde que se tornou claro que vamos ter mais um ano dramático, para assumir um mínimo de responsabilidades políticas? Mais uma vez, não estou naturalmente a falar de responsabilidades pessoais, não estou a reclamar a demissão de quem quer que seja, não estou a sugerir que todos ou sequer a maioria dos incêndios podiam ter sido evitados, não especulo sequer sobre o que poderia ter acontecido com outra governação. Mas que diabo! O panorama é desolador, o flagelo repete-se, ano após ano, os resultados estão à vista de todos, e o Governo é suposto ser Governo e responder pela sua ação e inação políticas! Por mais indireto e indeterminável que possa ser o nexo de causalidade entre estas e o panorama deprimente que temos pela frente. É a isso que se chama governar, é sobretudo a isso que se chama liderar.
Reparem que não o reclamo para fazer um combate político que não é meu, nem tão-pouco por ter qualquer prazer sádico em ver governantes a fazer mea culpa. Reclamo-o, precisamente, por entender que a tragédia dos incêndios não deve ser usada como arma de arremesso político. Mas, para isso, é preciso que o executivo entenda duas coisas. A primeira é que não pode, ele próprio, trazer o tema para a arena da chicana política a reboque da sua insuportável máquina de “spin”. De facto, estou convencido de que a generalidade dos portugueses está consciente da enormidade da tarefa que o Governo tem pela frente. Estou convencido de que não acreditarão que seria fácil a um executivo de cor diferente pôr fim a este flagelo. Mas estou ainda mais convencido de que reclamam, acima de tudo, um governo cuja obsessão principal não pareça ser a de alijar permanentemente todo e qualquer tipo de responsabilidades. A segunda coisa que o Governo deverá perceber é que a assunção de responsabilidades é uma saudável prática que serve, acima de tudo, para reforçar a confiança dos cidadãos nos agentes e nas instituições políticas. Ninguém espera (ou ninguém devia esperar) governantes e executivos infalíveis. Mas é mais do que legítimo exigir aos governos que aprendam com os seus erros e que corrijam os seus falhanços. A assunção transparente de responsabilidades é provavelmente a única garantia credível que podem dar aos cidadãos de que o farão ou tentarão fazer. E, a prazo, cimenta o capital de confiança política que, em democracia, não pode deixar de existir entre eleitores e eleitos.
No fundo, nada disto é complicado.
Notas em Forma de Assim
Os pianos perdidos da Sibéria
A meio caminho entre o ensaio histórico e a literatura de viagens, num registo intimista que contrasta com a aridez das paisagens siberianas, este livro de Sophy Roberts foi umas das mais prazenteiras leituras que fiz neste verão.
Somos o esquecimento que seremos
O título é de Borges, o livro é de Héctor Abad Faciolince. Uma viagem pelos anos de chumbo da violência colombiana a propósito de uma comovente evocação da figura de um pai. Coragem dentro da coragem.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.