A recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA sobre o aborto é, evidentemente, um retrocesso e uma péssima notícia para as mulheres americanas. Não proibindo nem verdadeiramente ilegalizando a prática, o tribunal, 50 anos volvidos, deixa de lhe dar a proteção constitucional de que beneficiava desde o célebre caso Roe vs. Wade, de 1973. Quer isto dizer que, na prática, deixa de haver uma posição ao nível federal sobre o tema e que, a partir de agora, competirá a cada estado definir a sua posição – sendo que vários destes estados, na sequência de uma fuga de informação de maio passado, tinham já preparada a chamada “legislação-gatilho” para proibir o aborto em praticamente qualquer circunstância, imediatamente após a decisão do Supremo, incluindo em casos de violação ou incesto, o que não deixa de ser de uma violência extraordinária.
Sou dos que entendem que o aborto envolve um dilema ético que, mais do que a proclamação de direitos absolutos, obriga à ponderação de direitos em conflito. Acontece que o tenho resolvido há mais de 20 anos (votei a favor da despenalização, quer no referendo de 1998, quer no de 2007). Além de considerar que há casos (precisamente como os da violação, do incesto, das malformações fetais e dos que colocam a mãe em risco de vida) em que o dilema me parece de fácil resolução, também sempre tive uma posição pragmática em relação a todos os demais: sempre acreditei que a realização de um aborto é uma violência que ninguém reclama para si mesmo de forma leviana. E sempre acreditei que a principal consequência da criminalização do aborto não é o seu desaparecimento por artes mágicas, mas a de o lançar para as franjas da marginalidade, especialmente no caso das mães mais pobres, sem recursos para continuar a fazê-lo em condições de segurança. Aliás, os números parecem corroborar a minha tese. Em Portugal, o número de abortos realizados desde a sua despenalização, depois de um período de estabilidade entre 2008 e 2013, tem mesmo vindo a reduzir-se. Ou seja, não é por ser permitido que as mulheres correm a fazê-lo. Inversamente, não é por ser proibido que deixaria de ser realizado.
No caso dos EUA, esta decisão é tão mais paradoxal quanto vai ao arrepio daquela que é – e tem sido historicamente – a posição maioritária dos cidadãos. O que a torna, apesar da sua indiscutível legalidade, ferida de alguma ilegitimidade.
Mas o ponto para o qual gostava de chamar a atenção é ainda outro: esta guerra pela ilegalização do aborto vem sendo preparada há muito tempo (nomeadamente, e nos anos mais recentes, através da nomeação de juízes por Donald Trump), aparece como uma contrarreação ultraconservadora e é, por isso mesmo, o reflexo ou um sintoma de um fenómeno muito mais vasto: a profunda polarização da sociedade americana, designadamente em torno das chamadas “guerras culturais”, que está a deixar a democracia e o modelo demoliberal americano ameaçados de uma forma que provavelmente não se via desde a guerra civil (e não uso o exemplo da guerra civil de modo leviano: ainda há poucas semanas, o Financial Times fazia a recensão de três livros recentes sobre a probabilidade de ela vir a acontecer nos EUA).
Este é um fenómeno em relação ao qual não deveríamos andar distraídos. Desde logo, porque é difícil conceber uma ordem mundial próspera e pacífica com uns EUA totalmente disfuncionais ou mergulhados numa qualquer guerra intestina. Mas também porque é crucial não importar para o nosso país este tipo de profunda disfuncionalidade.
Infelizmente, estão aí todos os sinais de que isso possa estar a acontecer. As “guerras culturais” são, para já, entre nós, um fenómeno circunscrito a algumas “bolhas” específicas. Até ver, o Twitter ainda não é o Mundo. Mas nada garante que a situação não evolua. Também por cá, a esquerda “woke” e profundamente iliberal, obcecada com superestruturas e conspirações de influência marxista, interessada em desconstruir o nosso modelo de sociedade, vem colonizando alguma academia, alguma comunicação social e algumas franjas políticas. Também por cá, uma contrarreação trauliteira e conservadora, de instintos não menos autoritários e iliberais, vai ganhando forma e peso político e social.
Podemos, é claro, assobiar para o lado. Mas é capaz de não dar resultado
Notas em Forma de Assim
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