Uma das mais antigas referências ao cancro pode ser lida no “Papiro de Edwin Smith”, um tratado médico de origem egípcia (calcula-se que tenha sido escrito 1600 anos antes de Cristo). Edwin Smith foi um egiptólogo americano que terá comprado o dito papiro em Luxor, em 1862, tendo ficado com ele até à sua morte. Então, a sua filha, doou o papiro à New York Historical Society, tendo sido mais tarde traduzido para língua Inglesa por James Breasted, médico da Universidade de Chicago. O papiro de Edwin Smith é um dos mais antigos textos sobre trauma e sobre a importância da cirurgia no tratamento de lesões traumáticas. Tendo cerca de 4 metros e 60 centímetros de comprimento (frente e verso), é considerado único para o avanço da medicina, por apresentar pela primeira vez uma aproximação racional e científica a problemas médico-cirúrgicos, excluindo a contribuição do sobrenatural (e do divino) para o aparecimento de doenças.
Só bastantes anos mais tarde, na antiga Grécia, foi a palavra “cancro” utilizada pela primeira vez para definir tumores com origem em “feridas ou úlceras”, por Hipócrates e seus discípulos. A palavra “cancro” deriva da palavra “caranguejo” (“karkinos”) em Grego, pela semelhança que o crescimento de alguns tumores apresenta com a forma desses crustáceos.
Os cancros são de facto “feridas que não cicatrizam” e “metabolicamente activos”, corroborando as observações descritas no papiro de Edwin Smith e estabelecendo uma importante ligação entre o desenvolvimento do cancro a processos inflamatórios crónicos
A tradução do papiro de Edwin Smith por James Breasted permite aceder a descrições exaustivas (traduzidas de hieroglifos magnificamente reproduzidos) de quarenta e oito casos de trauma, ferimentos, displasias e de tumores. Em detalhe, são descritos oito casos de tumores (ou “crescimentos anormais”) da mama que terão sido tratados através de queimaduras aplicadas localmente. Uma leitura mais atenta, revela que os tumores de mama foram caracterizados como sendo “rígidos” e por vezes dolorosos ao toque, como feridas “que recusam cicatrizar”, e “com temperatura elevada”. Estas características definem classicamente um processo inflamatório (rubor, calor, tumor, dor), contribuindo também para uma melhor compreensão de mecanismos celulares e moleculares do cancro detalhados em seguida.
Séculos mais tarde, Otto Warburg (Médico Alemão, Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1931) demonstrou que os cancros apresentam características metabólicas que resultam numa grande capacidade de consumo de nutrientes (tais como a glucose) e na produção de energia (“calor”) para suportar a expansão da massa tumoral. Essas descobertas vieram a ser fundamentais para, anos mais tarde, se utilizarem métodos de diagnóstico (como as “TAC”) e de tratamento (inibidores do metabolismo tumoral) para diferentes tipos de cancro. Mais tarde, em 1986, Hal Dvorak (Médico Patologista Norte Americano) estabeleceu uma similaridade notável, entre o cancro e a cicatrização de feridas, num trabalho incontornável, intitulado: Tumores: feridas que não cicatrizam. Trabalhos de investigação subsequentes demonstraram que os mecanismos de cicatrização de feridas resultam, nos tumores, na formação de um “estroma” (o “cimento” que suporta o seu crescimento) rígido e de difícil penetração por parte de células do sistema imunitário e de fármacos com ação anti-tumoral. Essas descobertas contribuíram, assim, para o desenvolvimento de terapias mais específicas, mais dirigidas e mais eficazes contra diferentes cancros.
Ou seja, os cancros são de facto “feridas que não cicatrizam” e “metabolicamente activos”, corroborando as observações descritas no papiro de Edwin Smith e estabelecendo uma importante ligação entre o desenvolvimento do cancro a processos inflamatórios crónicos.
A descrição de casos de cancro em textos médicos com milhares de anos diz-nos que o “cancro” é presença natural, na vida humana, e dá-nos (ainda) pistas para uma melhor compreensão dos mecanismos que explicam o aparecimento e a progressão destas doenças.
Importa, no entanto, referir que traduzir descrições empíricas (embora detalhadas e rigorosas) para conhecimento científico sólido e com importância para o diagnóstico e o tratamento do cancro implica décadas de investimento e de inovação tecnológica. Sem investimento em ciência, em todas as suas vertentes (formação de recursos humanos especializados, inovação tecnológica, criação de “hubs” de conhecimento e inovação, nomeadamente (bio)médica), não teria sido possível dar o salto das descrições do papiro de Edwin Smith para a atualidade da investigação e do tratamento do cancro.
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