A crise climática é uma crise dos direitos da criança. Os números são a evidência para esta afirmação: mundialmente, 175 milhões de crianças são afetadas anualmente pelos danos ambientais e alterações climáticas e estima-se que estes impactos se intensifiquem à medida que as temperaturas globais sobem. É indiscutível que as empresas desempenham um papel importante nas alterações climáticas decorrente das suas atividades, mas também ao nível das estratégias e medidas de adaptação que adotam no âmbito dos respetivos planos internos permitindo uma avaliação do impacto da sua ação na proteção dos direitos humanos.
No entanto, quando falamos de direitos humanos, em particular em direitos das crianças, somos confrontados com uma triste realidade: a informação disponível é escassa, não permitindo uma avaliação do real contributo das empresas em relação às alterações climáticas e ao impacto negativo e/ou positivo na proteção dos direitos da criança. Também é verdade que esta circunstância está relacionada com o facto das empresas, de modo geral, terem um conhecimento limitado dos efeitos e das consequências potencialmente marcantes que as suas operações e cadeias de abastecimento podem ter nos direitos e nas vidas das crianças.
A par desta circunstância, temos vindo assistir globalmente a um número crescente de casos de litigação contra empresas relacionados com a violação dos direitos humanos e alterações climáticas resultantes da sua atividade. Esta circunstância está relacionada com crescente sensibilização em matéria de responsabilidades das empresas no que diz respeito ao efeito negativo das suas cadeias de valor nos direitos humanos, tendo-se agudizado nos anos 90, quando novas práticas de externalização na produção de vestuário e calçado alertaram para as más condições de trabalho nas cadeias de valor mundiais a que muitos trabalhadores, nomeadamente crianças, estavam sujeitos. Atualmente, muitas das situações reportadas em matéria de violação de direitos humanos tem a ver com o registo inaceitável de um número estimado de 152 milhões de crianças que trabalham, 72 milhões das quais em condições perigosas, sendo muitas delas forçadas a trabalhar sob violência, chantagem ou outros meios ilícitos.
Na Europa começam a surgir iniciativas por parte dos governos de regulação da ação das empresas em matéria de violação dos direitos humanos e eventuais danos ambientais, e exigindo a aplicação do dever de diligência obrigatória. A França e os Países Baixos já adotaram legislação para reforçar a responsabilização das empresas e introduziram quadros vinculativos em matéria de dever de diligência em matéria de direitos humanos e ambiente; mas outros Estados-Membros estão atualmente a ponderar a adoção deste tipo de legislação, nomeadamente a Alemanha, a Áustria, a Suécia, a Finlândia, a Dinamarca e o Luxemburgo.
Face a este quadro alargado de iniciativas nacionais, a UE pretende adotar igualmente uma abordagem comum nesta matéria. A Comissão Europeia apresentou, no passado dia 23 de fevereiro, a proposta de “Diretiva sobre dever de diligência das empresas e a responsabilidade corporativa”, com o objetivo de fomentar um comportamento empresarial sustentável e responsável ao longo das cadeias de valor e por todo o mundo.
Pretende estabelecer um dever de diligência das empresas no sentido de identificar, prevenir, eliminar, atenuar e responsabilizar pelos impactos adversos nos direitos humanos e no ambiente, tanto nas próprias operações da empresa, como nas suas filiais e nas suas cadeias de valor. Uma das situações de violação dos direitos humanos identificada é a violação da proibição de trabalho infantil, incluindo situações de escravatura, servidão, trabalhos forçados, prostituição, atividades ilícitas e trabalho que, pela sua natureza ou circunstâncias em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.
À UE e aos Estados-membros exige-se legislação especifica que assegure a aplicação de dever de diligência e de responsabilização das empresas em relação à proteção dos direitos da criança, respeitando os instrumentos internacionais, como a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, o Comentário Geral n.º 16 do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de 2013, onde se identifica um leque de obrigações estatais relativas ao impacto do setor empresarial nos direitos da criança, nomeadamente que os Estados imponham às empresas o dever de diligência em matéria de direitos da criança, mas também os chamados Princípios Empresariais, definidos pela UNICEF, pelo Pacto Global das Nações Unidas e pela organização “Save the Children”, que apontam ações empresariais concretas para respeitar e proteger os direitos da criança.
Às empresas exige-se que incorporem os direitos da criança nas respetivas agendas de sustentabilidade. Isto significa assumir o compromisso de respeitar e proteger os direitos da criança, garantindo que estes são parte do quadro orientador de sustentabilidade da empresa; depois analisar o contexto das suas operações de negócios e avaliar o respetivo impacto sobre as crianças (dever de diligência). A par disto, selecionar e colocar em prática ações dirigidas a crianças baseadas nas atividades principais do negócio, o que implica medir o impacto da sua ação e comunicar publicamente o progresso alcançado; e por fim, há que prever mecanismos de remediação transparentes e eficazes de situações de abusos.
A época em que as iniciativas voluntárias eram a única forma de incentivar as empresas a respeitar os direitos humanos está a dar lugar ao reconhecimento de que são necessárias novas formas de regulação com força legal, onde a proteção dos direitos humanos e, em particular, os direitos da crianças, terá que ser uma prioridade, cabendo aqui um importante papel à UE, aos seus Estados-membros, incluindo Portugal, trazer esta matéria para o processo negocial da atual proposta de “Diretiva sobre dever de diligência das empresas e a responsabilidade corporativa”.
É indiscutível que as atividades das empresas têm impactos nos direitos da criança. Daí que os mecanismos de dever de diligência e de responsabilização das empresas concebidos sem pensar nas crianças correm o risco de ser ineficazes na proteção dos seus direitos.
Segundo as palavras do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, não estamos a pedir às empresas para fazer algo de diferente da sua atividade normal, estamos a pedir às empresas para fazer o negócio normal de forma diferente.