Tendo o primeiro caso de Covid-19 em Moria sido identificado a 2 de setembro de 2020, o governo grego impôs uma proibição temporária de circulação aos residentes do Campo (de 2 a 15 de setembro). Este bloqueio seguiu-se a um conjunto de medidas restritas das entradas e saídas que já vigoravam há mais de 165 dias. A 3 de setembro, o executivo de Atenas anunciou, ainda, que o campo passaria a ser vedado e fechado. A decisão foi justificada pela necessidade de controlar a pandemia oferecer mais segurança, quer aos residentes, quer à comunidade local. Nos dias que se seguiram, verificou-se um grande aumento do número de casos positivos de Covid-19. Para piorar ainda mais a situação, na madrugada de 8 para 9 de Setembro, um incêndio consumiu rapidamente uma grande parte do Campo de Moria, destruindo não só as tendas nas quais as pessoas dormiam, como também uma parte substancial dos seus poucos pertences. Arderam, igualmente, grande parte das infraestruturas de apoio, nomeadamente as instalações onde se encontravam as organizações médicas, a tenda do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o espaço do European Asylum Support Office (EASO).
Durante anos, o governo grego e as instituições da União Europeia ignoraram os apelos e alertas sobre os perigos de manter tantas pessoas em condições insalubres e desumanas. As chamadas de atenção partiam de requerentes de asilo e refugiados, de Organizações Não Governamentais (ONG) locais e internacionais e das mais diversas instituições de solidariedade. Na noite do incêndio, muitos dos cerca de 13 mil residentes em Moria estavam a dormir. Todos foram forçados a fugir a pé com pouco mais do que tinham consigo nesse preciso momento. Mesmo os requerentes de asilo e os refugiados com problemas de saúde ou com dificuldades de mobilidade tiveram de encontrar soluções por si próprios.
Layla, Armand, Sophie, Joseph, Jean, Marie e Thérèse, o grupo de requerentes de asilo que temos vindo a acompanhar, também foram apanhados de surpresa. Eles, como quase todos em Moria, já estavam habituados aos frequentes incêndios em tendas. Mas o fogo do dia 9 de setembro tinha outra dimensão. Layla fugiu apenas com a roupa que tinha no corpo e com um pequeno saco onde guardava os seus documentos. Depois de sair do Campo e de tentar perceber o que tinha acontecido, começou a andar em direção a Mytilene, a localidade mais próxima. Armand, menor de idade mas que ainda continuava registado como adulto, para além da roupa que tinha vestida, apenas conseguiu levar mais algumas peças de vestuário. Perdeu, no entanto, tudo o resto, incluindo os seus documentos. Tentou novamente argumentar que era menor, mas voltou a ser ignorado e por isso continuou a não ter apoio. Joseph, com dificuldades em movimentar-se, só conseguiu sair da sua tenda quando o incêndio já a destruía. Por pouco não se queimou, mas conseguiu trazer consigo apenas parte dos documentos que tinha. Quando conseguiram sair do Campo de Moria, Jean, Marie e Thérèse procuraram proteger-se numa zona de mata vizinha. Thérèse — a filha menor — ficou com pequenas queimaduras nos braços.
As notícias sobre o que estava a acontecer espalharam-se rapidamente. Voluntários e trabalhadores das áreas da saúde e do apoio social conseguiram deslocar-se quase de imediato, tentando ajudar pessoas que necessitavam urgentemente de apoio imediato. Contudo, pouco tempo depois de este processo informal de ajuda começar, a Polícia ou grupos de populares passaram a impedir a passagem, tanto de trabalhadores humanitários que se dirigiam a Moria, como os residentes que tentavam fugir para Mytilene. Cerca de 13 mil requerentes de asilo e refugiados — incluindo os mais vulneráveis — foram forçados a dormir na rua sem quase nada. Ao contráro do que afirmou o ministro grego da Migração e Asilo, o fornecimento de alimentos e de água durante os dias após o incêndio esteve longe de ser ininterrupto. Dados os bloqueios impostos pela Polícia e a violência contra trabalhadores humanitários, a distribuição de bens essenciais não ocorreu durante vários dias. Além disso, quando a distribuição foi feita, nem toda a gente tinha conhecimento do local exato dos poucos locais de distribuição – dada a extensão e número de pessoas. Finalmente, as pessoas mais vulneráveis tiveram particular dificuldade de acesso a água e a alimentos uma vez que não conseguiam deslocar-se nem permanecer nas grandes filas para receber estes bens essenciais. Por outro lado, o apoio médico revelou-se muito limitado e, quase sempre, por iniciativa de ONG. A inexistência de instalações sanitárias e de pontos de acesso a água era, também, uma grande preocupação, especialmente tendo em conta a impossibilidade de realizar distanciamento social e outras medidas necessárias para evitar a propagação da Covid-19.
Durante os dias que se seguiram, a família de Jean, Marie e Thérèse foram acolhidos no perímetro de uma ONG que existia perto do Campo de Moria, onde receberam comida e água. Por sua vez, Layla, Armand, Sophie e Joseph ficaram a dormir no parque de estacionamento de um supermercado, partilhando o espaço com outras centenas de pessoas. Na maior parte dos dias não conseguiram aceder à comida e água distribuídas.
Um novo campo, apresentado como de alojamento temporário, foi entretanto erguido. O governo da Grécia anunciou que o novo espaço teria infraestruturas condignas, acesso a comida, água potável , electricidade e casas de banho de banho para todos. No dia 12 de setembro, as autoridades começaram a transferir para o local os requerentes de asilo e os refugiados que se encontravam dispersos desde o incêndio no dia 9 de Setembro. Depois da Comissária Europeia Ylva Johansson ter afirmado “No more Morias”, a realidade voltava a ser dramática, agora em Moria 2. Passados 10 meses da sua edificação, o espaço continua sem condições para as pessoas que nele vivem. Atualmente, ainda são cerca de 5.000 requerentes de asilo e refugiados. As tendas, pouco adaptadas ao frio e à humidade vinda do mar, à chuva e à lama, ao calor e ao pó continuam a dominar o campo. As necessidades específicas de pessoas com mobilidade reduzida ou com outras limitações também permanecem, no essencial, por atender. A quantidade e a qualidade da comida deixam muito a desejar. Durante o Outono e o Inverno, os duches não tiveram água quente. Ocorreram surtos de sarna. É constante a presença de ratos e de pulgas, de baratas e outros insetos. A existência de locais para grupos mais vulneráveis, como mulheres desacompanhadas ou menores em processo de determinação de idade, continua a ser inexistente.
O novo campo foi, também, apresentado como mais seguro. No entanto, a violência continua a ser uma constante, agressividade potenciada pela falta de condições e pelo desespero de quem é forçado a viver nestas condições (incluindo a falta de informações sobre a evolução do seu pedido de asilo). Paralelamente, não aumentou — antes pelo contrário — a capacidade de transferir para outros locais as pessoas vítimas de violência e os indivíduos com maiores vulnerabilidades físicas ou psicológicas.
Agravando a realidade do dia a dia, perante o silêncio das instituições da UE, o Governo Grego tem vindo a aprovar legislação que restringe ainda mais os direitos e as garantias dos requerentes de asilo e dos refugiados. A título de exemplo, cito a norma que, em 2021, passou a considerar a Turquia como um país terceiro seguro para pessoas fugidas da Síria, do Paquistão, do Afeganistão, do Bangladesh e da Somália em toda a Grécia (Grécia continental e ilhas). Estas nacionalidades representaram cerca de 70% dos novos pedidos de asilo em 2020. No momento actual, nos países membros da UE, aparentemente, já ninguém espera que a realidade material e emocional, que a protecção legal de requerentes de asilo e refugiados melhore nos próximos meses ou anos. Enquanto assistimos a constantes debates políticos sobre o que fazer com estas pessoas, elas continuam viver em condições indignas, sem perspectiva de uma alteração positiva de fundo da política de asilo europeia.
O que aconteceu, entretanto, a Layla, Armand, Sophie, Joseph, Jean, Marie e Thérèse? É do que vos falarei nas próximas crónicas.