Dos quatro retângulos que compõem o “boneco” apresentado pelo primeiro-ministro, é o vermelho que tem comandado a nossa vida coletiva nos últimos meses. Por nos sabermos no retângulo vermelho da saúde pública, aceitámos fechar-nos em casa, com o cortejo de desgraças sociais e económicas daí decorrente. Aceitámo-lo porque acreditamos que isso é imprescindível para passarmos do vermelho para os amarelos e, desejavelmente, para o verde, onde a vida reganhará possibilidades de ser fruída com horizontes de futuro. Temos vivido na má exceção para reconquistar a boa regra.
Compreende-se esta aceitação geral: é o medo da morte que nos determina. De uma morte ali à esquina, uma morte no nosso tempo, a nossa morte. A pergunta que temos de nos fazer é se só a morte iminente nos consegue convencer, como sociedade, de que temos de arrepiar radicalmente caminho para que a vida em abundância para todos possa ser um facto. A verdade é que, em várias dimensões da nossa vida, estamos, há muito, no retângulo vermelho. No retângulo da morte. E, desgraçadamente, continuamos a viver na irresponsabilidade que torna os retângulos amarelos e verde miragens longínquas. Dou, de seguida, dois exemplos de emergências que vivemos de modo irresponsável.
Primeiro exemplo: a nossa resposta às alterações climáticas. Desde que as Nações Unidas reconheceram a existência de alterações climáticas, nos anos 70, as emissões mundiais de gases com efeito de estufa praticamente duplicaram. Em termos relativos, Portugal contribuiu como os demais para este comportamento suicida. Resta-nos agora menos de uma década para adotar e dar efeito concreto às medidas de emergência que nos podem livrar da irreversibilidade da tragédia.
Estamos no retângulo ambiental vermelho e continuamos a ter políticas que são, para o Ambiente, equivalentes ao que as festas clandestinas ou o não uso de máscara são para a Covid. Não assumimos a emergência porque nos convencemos de que o risco de morte incidirá não sobre nós, mas sobre os nossos filhos e netos. São eles os grupos de risco e, irresponsavelmente, não estamos a encará-los como tal, antes a acelerar a sua morte. Não nos impomos o investimento em transportes públicos energeticamente limpos, em eficiência energética na habitação e em energias renováveis como urgência, e mudamos políticas e hábitos de vida com a mesma lentidão com que percebemos que o último Natal não era propriamente para festas de família. O resultado desta inconsciência social será o mesmo que vivemos em janeiro nos hospitais. Com uma diferença: quando a catástrofe ambiental se tornar irreversível, não haverá vacina para a fazer recuar.
O segundo exemplo é o da habitação. Neste domínio, estamos no retângulo vermelho há décadas. Quem entregou ao mercado e à banca a satisfação do direito à habitação sabia o que daí ia resultar: apenas 2% de habitação pública, cerca de 20% da população em situação de pobreza energética, com os preços da habitação a aumentar 17% desde 2010, ao mesmo tempo que mais de 730 mil casas estão vazias. É, há tempo demais, de uma situação de catástrofe que se trata. E, no entanto, insistimos na irresponsabilidade.
Continuamos a aceitar políticas de promoção da aquisição face ao arrendamento, mesmo sabendo que o recurso ao crédito afoga muitas famílias em dívidas que não conseguem pagar e que se mantêm após a entrega da casa ao banco. Continuamos a aceitar políticas de animação especulativa do mercado de arrendamento, como os vistos gold ou os benefícios fiscais a fundos imobiliários.
Passar do retângulo vermelho para os amarelos ou para o verde supõe a coragem de reverter estas políticas de décadas e deixarmos de olhar a habitação como um assunto do mercado, mas sim como um direito de todos. É essa a emergência. Uma governação que nos mantém no retângulo vermelho para ceder ao negacionismo dos especuladores será julgada por isso.
Aplicar o boneco dos quatro retângulos às diferentes emergências do presente levará a escolhas determinadas de mudança. Antes que a emergência vire catástrofe consumada.
(Opinião publicada na VISÃO 1463 de 18 de março)