Formou-se um coro para reclamar um governo “de salvação nacional”. A polifonia não é o forte do coro. A uma só voz, o coro pede ao Presidente da República que demita este Governo. Para formar um “gabinete de combate”, diz Villaverde Cabral. Para o substituir por “um governo de iniciativa presidencial”, defende Miguel Sousa Tavares. No conteúdo, o coro tem tenores e barítonos. A liderar os primeiros está Marçal Grilo, que quer um governo assim para governar “sem condicionalismos ideológicos e sem esta ideia de ser da esquerda ou ser da direita”. Sousa Tavares afina pelo mesmo diapasão: um governo “sem preocupações (…) de representação interpartidária, mas sim formado com base num único critério: competência e determinação para enfrentar a crise”. Já Alberto João Jardim é mais ousado: “um governo de salvação nacional com os partidos democráticos”. E Nobre Guedes concretiza (não que fosse necessário): “Tal solução poderia ter o PS, o PSD, o CDS e a Iniciativa Liberal.”
O repertório deste coro está gasto. Está gasto o argumento de que a salvação do País deve assentar nessa suspensão da democracia que tem vindo a ser acalentada pelas várias formações deste coro nos últimos anos. O sidonismo regenerador, o governo dos homens probos, o desdém para com a centralidade dos partidos na democracia, tudo são melodias de sempre.
Está gasta a musiqueta de que a salvação nacional é superior a essa minudência que é “ser de esquerda ou ser de direita” e que não deve ter “condicionalismos ideológicos”. O fascínio pela superioridade da tecnocracia como modo de governação é antigo nas elites portuguesas. E é um puro biombo, como se vê pelas sugestões sinceras de alguns dos cantores de que um governo que não seja nem de esquerda nem de direita é um governo do PS com a direita. Para eles, governar sem condicionalismos ideológicos quer dizer não ter de negociar à esquerda o conteúdo das políticas. O coro da salvação nacional tem saudades do arco da governação. É natural.
O coro tem razão numa coisa: o País precisa de ser salvo do afundamento em que está. Mas as causas e o essencial desse afundamento e os caminhos dessa salvação são objeto de intensa disputa política. O coro mostra a sua escolha nessa disputa. Felizmente é só uma escolha. Porque, ao contrário do que nos querem convencer, está longe de ser repertório único.
O afundamento de Portugal são as suas desigualdades. O afundamento de Portugal é uma elite que vive do vampirismo do que é público ao mesmo tempo que apregoa as virtudes do privado. O afundamento de Portugal é o chico-espertismo de colarinho branco no BPN ou no Novo Banco. O afundamento de Portugal é a precarização sem fim à vista de sucessivas gerações sem outro sentido de futuro que não seja o da incerteza e o da instabilidade permanentes. O afundamento de Portugal são dois milhões de pobres depois de prestações sociais (sem elas seria mais do dobro).
Sim, é preciso salvar o País. E a salvação do País passa por pensar estrategicamente e sem condicionalismos ideológicos liberais o imperativo de robustecer os mecanismos de luta contra as desigualdades que são os serviços públicos, com o Serviço Nacional de Saúde à cabeça. Tínhamos precisado de um SNS de combate à pandemia e vamos precisar de um SNS de combate para repor toda a atividade que ficou preterida. A salvação do País passa por pensar estrategicamente e sem condicionalismos ideológicos liberais a qualificação dos trabalhadores, a começar pelo seu salário. A salvação do País passa por um programa de transição energética que previna a catástrofe e defenda as pessoas, incluindo o desenvolvimento e a eletrificação do transporte público e a aceleração da transição para as energias renováveis, em especial na produção solar descentralizada.
É preciso salvar o País do seu afundamento. Para isso são precisas maiorias determinadas na aplicação das políticas que o farão.
(Opinião publicada na VISÃO 1458 de 11 de fevereiro)