“ O governo tem que pagar mais aos médicos”, dizia recentemente um conhecido dirigente sindical. Esta é a origem da oposição dos médicos à política deste governo para o setor, mesmo que às vezes pareça outra coisa. Estamos de acordo que as tabelas salariais na administração pública estão muito aquém do que seria razoável para um médico, face à sua diferenciação curricular e ao valor de mercado do seu trabalho, já que não podemos esquecer os honorários praticados no setor privado, incomensuravelmente superiores aos verificados no SNS.
O atual governo não escapará à necessidade de ter que encarar explicitamente esta questão, se quiser mudar alguma coisa na contratação dos médicos e na criação de um estatuto de “dedicação plena”. Aqui chegado, inicia-se um outro processo, muito mais exigente, que é o de mudar o paradigma do modelo remuneratório em vigor. De facto, o modelo salarial com base em horas de trabalho terá que dar lugar a um modelo remuneratório baseado no desempenho, em que a eficiência, a produtividade, a qualidade e os resultados clínicos terão papel preponderante.
Não se trata, propriamente, de uma grande novidade a nível nacional e internacional, pois já se pratica no nosso setor privado e em serviços públicos e privados, em muitos países do mundo.
Este novo modelo remuneratório vai exigir uma efetiva governação clínica dos serviços públicos de saúde, matéria muito incipiente ou, atrevo-me a dizer, quase inexistente nos nossos hospitais e nos cuidados de saúde primários.
A governação clínica representa a gestão integrada e permanente de todas as vertentes que envolvem a estadia e a passagem dos doentes pelos serviços, desde a correção diagnóstica, aos exames complementares solicitados e às terapêuticas instituídas, em que os medicamentos ocupam particular relevância. A rentabilidade e a manutenção das estruturas e dos equipamentos, os tempos e as listas de espera, as durações de internamento, as complicações e infeções, as idas às urgências, os acontecimentos adversos, a mortalidade e as readmissões, são matérias em permanente escrutínio, e às quais os diretores clínicos e os diretores de serviço devem dedicar grande parte do seu tempo de trabalho. Só assim conseguirão garantir o acesso e a segurança dos seus doentes e os bons resultados a médio prazo, quer na sua recuperação, quer na criação de valor para a sua saúde e para a sua vida social. Toda esta informação deve estar devidamente preparada, com indicadores mensuráveis, objetivos e atualizados, e o seu confronto com as melhores práticas deve ser a medida da excelência clínica.
É sobre este conhecimento que devem ser definidas as remunerações de cada médico. O seu desempenho deve ser avaliado à luz dos seus resultados, de acordo com os indicadores acima expostos e face ao volume, complexidade e gravidade dos seus doentes e ponderando o trabalho em equipas multidisciplinares. Há hoje informação disponível para formar todo este conhecimento e não é aceitável que não seja utilizada para gerir os serviços públicos de saúde e para passar a remunerar os nossos médicos.
Neste novo cenário, a remuneração dos médicos será sobretudo orientada pelo seu trabalho e não pelo seu horário de trabalho. Será variável ao longo do ano, em função das especificidades da procura, do volume, da diferenciação e da qualidade do trabalho realizado. Deverá ter um salário-base, como garantia mínima remuneratória, majorado significativamente em função dos atributos de eficiência e qualidade descritos. Cada profissional terá desafios (individuais ou em grupo) de produtividade, de qualidade, de melhoria do acesso e outros, a que deverá corresponder através de um compromisso de trabalho claramente assumido. Os desvios encontrados deverão ser analisados face à sua dimensão e circunstancias e isso poderá ter consequências na remuneração final do ano, para cima ou para baixo.
Os aumentos salariais dos médicos ficarão, assim, dependentes de um novo modelo contratual que requer transformações profundas nos modelos de gestão dos serviços. Face à base remuneratória atual esperam-se aumentos sensíveis nos salários dos médicos mais disponíveis e que aceitem novos compromissos de volume e qualidade. O que significará que este novo modelo não será aplicado universalmente a todos os médicos do mesmo modo, leia-se, com os mesmos impactos remuneratórios. Estima-se que uma remuneração por incentivos e baseada na “performance” poderá fazer subir em 30% o contributo de cada profissional, aumentando assim, significativamente, a médio prazo, a capacidade de resposta do SNS. Isso implicará um redesenho na distribuição dos médicos e a constatação de um excesso nalgumas especialidades, cujas consequências deverão ser adequadamente previstas e resolvidas.
Há, todavia, alguns riscos nestes modelos de remuneração pelo desempenho: a procura de nichos de trabalho aonde se pode produzir muito, mas que podem não ser socialmente prioritários; a sobreprodução e o sobreconsumo, muito comum em modelos de remuneração “fee for service”, em que os profissionais são mais propensos a sobrediagnosticar e prescrever atos complementares em excesso, porque ganham em função dos atos realizados. Só uma adequada governação clinica poderá obviar a estes excessos, evitando atos inúteis ou precipitados que aumentam custos e põem os doentes a correr riscos desnecessários. A liderança clínica forte e sempre presente, mas também bem remunerada, é indispensável nestes contextos de trabalho em “ambiente público” e, o esforço de comparação constante com as melhores práticas, um foco permanente.
Só com este novo estatuto remuneratório o SNS se tornará competitivo com o setor privado na fixação de médicos, e só assim será possível definir políticas e desenvolver programas de serviço público que limpem listas de espera, acabem com as “falsas” urgências, tornem efetivo o conceito de médico de família, ocupem plenamente os blocos operatórios e tornem a gestão das camas mais eficiente. Paralelamente, os indicadores de qualidade clínica, hoje ausentes da avaliação corrente dos serviços, passam a ser incorporados com a importância que merecem na esfera de avaliação do trabalho médico.
Importa dizer que as outras profissões de saúde devem também ser objeto de incentivos, alinhados com os incentivos dirigidos aos médicos, mas não necessariamente do mesmo tipo. Incentivar, por exemplo, um grupo de médicos a racionalizar o uso de meios complementares de diagnóstico, não é compatível com um incentivo que remunere os técnicos de diagnóstico com base no volume de atos realizados.
Criar este novo contexto de trabalho para os médicos exige um intenso diálogo com a OM e os sindicatos, na procura das melhores soluções operacionais que tornem viável um acordo duradouro e frutuoso para melhorarmos o nosso SNS. Aumentar a massa salarial dos médicos sem mudar o contexto de trabalho, representará apenas mais custos para o SNS sem qualquer contrapartida útil para os cidadãos.