Há muitas formas de viajar. A que mais gosto é viajar por terra. Ver o país a passar na janela e partilhar a experiência com os passageiros locais acrescenta uma dimensão cinematográfica com boas doses de imprevisto ao percurso.
Na última crónica, aproveitei a viragem de ano para focar a mudança e partilhei uma atividade para os mais novos. Hoje falo de adversidades no contexto familiar e de alguns antídotos (podem ver outras dicas de gestão emocional no projeto Kids em www.mariapalha.com).
Fiz Bogotá-Medellin de autocarro. São 18 horas. Uma viagem caricata.
Tratando-se de uma viagem maioritariamente noturna, não esperava encontrar o pequenino televisor a passar filmes dobrados em Espanhol toda a noite. Também fui surpreendida pela entrada rompante dos vendedores ambulantes a tentarem vender os seus bens. Mesmo que fossem 1h da manhã, 2h ou 4h. Fui acordando algumas vezes sobressaltada. Confesso que, os incentivos de vendedores de CDs para que os passageiros cantassem, desafinadamente, um refrão de merengue e o concurso da vendedora de balas e bolinhos: “Para ganhar um bolinho basta acertar na resposta: O que deve uma mulher fazer quando descobre a infidelidade do marido?” me alegraram a noite.
Foi uma viagem rica. Rica em filmes dobrados, souvenirs, música e muita comida.
Já dizem os sábios, independentemente do destino, o caminho é que faz a viagem.
Os ânimos começam a aquecer com a próximidade a Medellin.
Antigamente, Medellin era um lugar famoso pelos seus perigosos cartéis de droga.Hoje chamam-lhe a “cidade da eterna primavera”, não só porque a temperatura anual ronda os amenos 27 graus (por estar erguida no cento do vale de Aburrá) mas pelo característico aroma a café. Afinal aqui, o café é mais que um café, é uma forma de vida.
Medellin já tem uma musicalidade muito própria, mas aos fins de semana quando o merengue e o reggaeton aumentam o seu volume é inevitável não abanar o pezinho.
Na Praça de Botero ainda hoje se encontra uma das igrejas mais emblemáticas da cidade e não é pelos seus vitrais, é por estar bem protegida pelas “Provedoras de Amor”. As “Provedoras de Amor” são mulheres aptas a aceitarem o convite para irem ao motel em frente da igreja “promover amor”. Afinal o importante é que o homem que requisite amor, consiga logo em seguida limpar os seus pecados.
Não há sombra de dúvidas de que é a segunda maior metrópole colombiana.
Diria que é impossível passar por aqui e não ouvir falar do “homem que não se pode dizer o nome”.
Amado por uns, idolatrado e odiado por outros, ele foi sem dúvida um dos marcos de resiliência e adversidades da cidade.
Era o líder do famoso cartel de drogas de Medellin.
Pablo Escobar é “aquele que não podemos dizer o nome” e foi um dos responsáveis pelos anos sangrentos, guerras, guerrilhas e assassinatos do País nos anos 90.
Pablo nascido numa família de classe média colombiana e nunca escondeu o sonho de ser bilionário. Ainda jovem começou a contrabandear cigarros. Mais tarde, cocaína.
Aos 23 anos começa a namorar a mulher com quem acaba por casar e ter 2 filhos. Juan Pablo era o mais velho.
Escobar, apenas com 26 anos já contrabandeava cerca de quinze toneladas de cocaína por dia, no valor de mais de meio bilhão de dólares. O irmão revelou que chegavam a gastar 1000 dólares por semana em elásticos para enrolar as pilhas de dinheiro e cerca de 10% da fortuna anual era desconsiderada pela deterioração que os ratos faziam quando roiam as notas de cem dólares, escondidas na Fazenda Napoles, em Medellin.
A Fazenda Nápoles era uma herdade com dez moradias dispersas por três mil hectares. Com mais de 27 lagos artificiais e um parque jurássico com dinossauros à escala real, cem mil árvores de fruta e um jardim zoológico com 1.200 espécies. Era o centro de operações do Cartel de Medellin, onde Escobar vivia com a sua família e com os 1.700 homens ao seu serviço. Era ali que muitos recebiam o seu treino militar e que fazia os primeiros ensaios com carros-bomba.
Numa das incursões que fiz para entrevistar crianças, tive o privilégio de conhecer o lado humano da vida de Escobar, o seu filho, Juan Pablo (o filho mais velho de Escobar). Conheci-o através da voz de um dos caçadores privados de Pablo Escobar.
José tem 85 anos, ainda hoje é caçador e em tempos, para além de usufruir da Fazenda Nápoles, conhecia bem a família e o filho de Pablo Escobar, Juan. José estava responsável por satisfazer os desejos de caça de Escobar.
O caçador contou-me que Juan tinha apenas 7 anos quando o seu pai lhe revelou que a sua profissão era ser bandido. Dizia que Escobar nunca tentou enganar o filho, sempre lhe disse a verdade. Via muitas vezes Juan Pablo brincar na fazenda. Tinha amigos de todas as idades, e mesmo vivendo com constantes questões de segurança, pois tinha os seus guarda-costas, também presenciava os treinos guerrilheiros na fazenda. Sempre foi uma criança com brilho nos olhos.
Recordou que quando Juan fez nove anos, Escobar deu-lhe a espada que havia sido doada por um militar a quem Escobar poupou a vida. “Embora fosse muito pequeno, Juan teve que aprender a lidar com essa realidade. Tiveram momentos bons, em que puderam desfrutar do dinheiro e da fortuna, mas depois da morte do Ministro Bonilla praticamente não tiveram descanso… Os miúdos viram muitas mortes, muita violência. Inclusivé perderam o pai muito cedo. O narcotráfico deu tudo àquela família, mas também lhes roubou muito, até vidas. Juan Pablo sempre foi um miúdo voltado para coisas boas. Ele era um verdadeiro colecionador bons momentos, dos seus sonhos… Talvez por isso, Juan Pablo se tenha transformado num famoso escritor e ativista de paz”
Uso a história de Juan Pablo para focar no tema da adversidade por várias razões, talvez a primeira seja para mostrar a antítese do que normalmente o espaço Família significa.
Por idealização, família é um espaço seguro, de proteção e concretização do amor de dois adultos. Um casal que se junta, porque se ama e, cujo amor resulta numa criança (ou duas ou mais). Quando se fala em família, é inevitável não idealizar um casal que fica junto para sempre, que supera as vicissitudes da vida e ainda protege as suas crianças. Onde os pais morrem antes dos filhos, e por velhice. Contudo, a realidade costuma ser diferente.
Famílias são muitas vezes palco de adversidades, de violência, dor ou sofrimento, chegando a deixar cicatrizes emocionais e psicológicas para a vida.
Por isto, resolvi acrescentar a questão da adversidade em contexto famíliar como uma das componentes essenciais de um Kit de Emoções.
Adversidade significa contratempo, obstáculo, dificuldade, uma contrariedade ou um impedimento para a ação. Logo trás, sempre, mal estar. São inevitáveis e fazem parte da vida.
Por isto decidi perguntar à criançada o que as faz feliz, pois, se são inevitáveis e trazem mal-estar, então, é essencial criar uma conta poupança de emoções prazerosas, que nos ajude a lidar com o embate.
A pergunta que coloco é simples “o que te faz feliz?
Na Colômbia a resposta comum é a “família”. O xavi de 6 anos sugeriu que para serem felizes os adultos “não se deviam matar por amor”. Pablo de 8 anos defendia que se devia estar com a família, fazer família era o que iria fazer dele uma pessoa muito feliz. A Paloma de 7 anos, defendia que o que a deixava mesmo feliz era receber um elogio de pessoas com quem se cruza todos os dias.
No Japão, as respostas rondavam a “existência de outras pessoas”, “ajudar os outros”. O Yuki de 6 anos dizia que para ser mais feliz tinha que ter sempre os seus amigos a brincarem por perto. A Shizuko, de 7, dizia que era o facto de conseguir fazer uma coisa boa por alguem: “Quando ajudo outra pessoa sinto-me mesmo bem. Preciso fazer isso muitas vezes.”
Na Serra Leoa as respostas começavamo no “o surf” e inevitavelmente terminavam em “ter uma refeição por dia” ou “ter dinheiro para estudar”.
Em Portugal, as crianças entre os 5-8 anos disseram que “receber presentes”, “ter novos jogos da PS4”, “quando os pais têm tempo para fazermos coisas juntos” eram o que mais os deixavam felizes.
E a si? O que o/a deixa feliz e que pode fazer para ir amealhando na sua conta poupança de emoções prazerosas para que seja mais fácil lidar com as adversidades?
Aqui fica uma atividade para explicar que conseguimos recuperar de adversidades (para crianças dos 5 aos 8 Anos):
Uma forma de explicar sobre o impacto de uma adversidade e de como só pode superar, é através da natureza.
Leve o seu filho/a um jardim/parque/campo. Peça-lhe que descubra uma planta pequenina. Peça-lhe que a observe e a descreva a si, como se você não a estivesse a ver.
Peça-lhe em seguida que imagine o que pode acontecer a essa planta se alguém a agarrar, arrancar ou puxar com força ou até se houvesse uma grande tempestade? (possivelmente vai responder que morre, que fica amachucada…)
Em seguida peça-lhe que procure uma grande árvore. Faça as mesmas perguntas que fez para a planta pequenina. E termine a perguntar o que ele preferia ser em caso de tempestade. A árvore forte ou a planta pequenina? (possivelmente vai responder a árvore, por ser maior e mais forte).
Depois explique que as pessoas são como plantas e árvore, e que podemos escolher como crescer. Por exemplo, se nos sentimos uma planta indefesa, podemos ver quem nos pode ajudar em momentos de tempestade, que coisas podemos fazer com tempestade, e o que fazer em que momento. Podemos ainda ver quais são as vantagens de ter chuva nas nossas vidas. Afinal a água é essencial para o crescimento das plantas. Quais são as coisas difíceis que tens sentido como tempestade na tua vida?
Construção da Caixa das memórias felizes:
Após o passeio, chegou o momento de criar uma caixa das memórias felizes. Uma caixa que servirá para regar os dias de seca ou secar os dias de chuva. Neste caixa a criança deve ir colecionar coisas que a fazem sentir bem. Números de telefone de pessoas que são importantes para ele/ela; Desenhos, brinquedos importantes e até lembretes, que podem fazer em conjunto – “Tu és importante nesta família porque….”, “gosto muito de ti porque…”,”não te esqueças que és ótimo a fazer…..”
Boas construções felizes!
Uma reflexão para os adultos lidarem melhor com adversidades na família.
1. Perceber que tipo de família é a nossa.
Há vários tipos de famílias. Christopher Hamilton, no seu livro sobre como lidar com adversidade familiar, defende que oscilam entre dois grandes grupos:
As famílias com um acordo tácito, onde tudo o que magoa os outros, não se fala, é proibido e até tabu. Caracterizadas, muitas vezes por uma felicidade estranha e irreal.
E aquelas famílias onde nunca se pondera que possa haver algo que magoe os outros. As famílias egoístas.
Num segundo momento o autor foca a aceitação de algumas premissas como base para se lidar com as adversidades em família.
1. A esperança de amor incondicional: Normalmente família é o lugar onde esperamos receber o amor e carinho, mas é também onde aprendemos a ser independentes. É na família que aprendemos, por privação, a ganhar independência e isso significa sofrimento. Aceitar a família como um campo de treino de independência retira um pouco de romantismo sobre o que se idealiza receber deste grupo.
2. “Desculpa sou um idiota!”. Aceitar que mesmo quando somos adultos repetimos reações que tínhamos em criança, com nossos pais. Quem nunca viu dois namorados a discutir e um deles a bater com a porta e saír? Essas são as reações que uma criança pode ter com os seus pais, e que se torna totalmente desadequado repetir em adulto. Contudo, essa é uma realidade. O autor defende que é essencial “aceitar que somos idiotas” para lidar com as adversidades familiares, assim fica mais fácil pedir desculpa, corrigir erros e emendar situações.
3. “Syonara Culpa!”. Os sentimentos de culpa estão muitas vezes presentes quando se fala em “Família”. A sociedade, e logo em seguida a família, exercem uma grande pressão para que se esteja presente e a culpa, ora porque “não me sinto bom filho” ora porque “devia fazer isto ou aquilo” ora porque nos habituamos a esperar X ou Y destas relações. A proposta do autor, é que mudemos de ângulo, que comecemos a olhar para a nossa família como reagentes, físicos e quimicos. Entendendo, que há certas reações químicas que estão fora do nosso controlo. Tal como nunca conseguiremos misturar água com azeite, nunca conseguiremos que X ou Y reajam como esperávamos, como reagentes à natureza. Nesta perspetiva as pessoas ganham uma dimensão quimicamente possível e não intencional.
4. “Adeus, bye bye, Fui!: Ainda na linha da físico-química, o autor fala de distância, como um recurso a não esquecer. Refere-a como uma decisão honesta, que não deve ser culpabilizadora. Se dois reagentes não se misturam ou provocam mesmo uma reação tóxica, o melhor e mais honesto a fazer é aceitar que assim é e resistir às fortes pressões sociais e familiares, sem culpa!
5. “Estou crónicamente estragado e então?”: Tal como o autor, também ouço esta frase em consultório, a sensação de que se ficou cronicamente estragado. Hamilton defende que este mecanismo de estrago, normalmente é compensado por outras coisas, no caso do filho de Escobar, tornou-se num ativista de paz. Não precisa ser um exemplo extremo, basta, por exemplo, registar o que se sente num diário, quem sabe um dia dará um livro. Afinal quando dói, a tendência é achar que ninguém sente assim, quando na realidade é muito diferente.
6. Aceitar e reconhecer a Solidão: As emoções difíceis fazem parte da realidade familiar e isto deve ser uma premissa consciente. Muitas vezes não vamos ser entendidos pelos mais velhos, isto também é uma realidade, e quando se aceita, reduz as expetativas e pressão sobre estas relações e permite a entrada de um amor maior, mais compaixão.
Uma atividade lúdica que nos pode ajudar a aceitar que as Adversidades vão fazer parte da vida.