De cabelos negros lustrosos e um olhar profundo na mesma tonalidade, Rand tem um sorriso cada vez menos tímido e uma gargalhada contagiante. Acaba de fazer vinte e um anos na paz europeia.
É a terceira de quatro irmãos espalhados pelo mundo, o pai é pediatra e a mãe é a sua assistente. O irmão mais velho é dentista na Alemanha, a irmã a seguir, Alma, está a terminar o mestrado em França e a mais nova está ainda na Síria com os pais. Faz parte de uma família de drusos, nunca cobriu a cabeça com um hijab e conquistou a vida que tem pela teimosia.
Estava no segundo ano do liceu quando começou a sonhar em entrar para o Conservatório. Depois de cinco anos a estudar música, aprendeu a tocar flauta, no ano em que começou a guerra na Síria. Ela vivia em Sawida e os professores vinham de Damasco para dar as aulas. Ao fim de três sessões, a professora não voltou, as estradas eram perigosas, e Rand passou a estudar sozinha. Praticou noites e dias, até que decidiu, contra a vontade da família, participar num concurso da Ópera de Damasco. Ganhou e foi primeira flauta num workshop de um mês, com músicos europeus.
No fim do Secundário, disse aos pais que queria tentar os exames de entrada no Conservatório. Mais uma vez, não acreditaram que fosse possível. Não queriam deixar a filha partir para a vida dura da capital, argumentaram que ela não iria conseguir, que precisava de pelo menos um ano de preparação, acompanhada por um professor, para ser admitida. Determinada, decidiu, mesmo assim, partir.
Passou um mês em Damasco fechada em casa, longe das bombas e da destruição, a praticar para alcançar o seu sonho. Em setembro entrou para o Conservatório Nacional.
Contou-me que, quando lá chegou, no espaço de uma semana, viu a guerra toda. Viu o seu bairro explodir, assistiu à guerra química, viu corpos, fumo e sangue nas ruas. Mas era isso ou ficar em casa dos pais, a ver o tempo passar.
Os pais de Rand deixaram-na ir para Damasco, mas exigiram-lhe que escolhesse um curso “sério”, mesmo que continuasse o de música, para não desperdiçar as suas capacidades intelectuais. Durante dois anos, Rand estudou música e engenharia ótica, começou a dar aulas a crianças para ganhar algum dinheiro e todos os fins de semana voltava a Sawida para ajudar os pais.
A situação agravava-se a cada dia. Chegou a fazer viagens de mais de duas horas escondida debaixo dos bancos do autocarro, para se proteger dos disparos do “Estado Islâmico”. A violência esbofeteava a capital síria e quem lá vivia.
“Vi muita gente morta nas ruas. Um dia, estava a caminho de um ensaio para um concerto e vi uma coisa horrível, que nem vou contar. Decidi voltar para casa. Entrei no quarto e a minha cama estava cheia de pedacinhos de cimento porque o edifício estava a tremer por causa das bombas.” Enquanto limpava o quarto, decidiu desistir de tudo.
Estão a ver aquelas pessoas que fazem parte da nossa vida e de que só nos lembramos quando desaparecem? O contínuo que se reforma, o senhor Manuel da mercearia que passa o negócio ao filho, a senhora embirrante da secretaria que vai de férias… Todas essas pessoas começaram a desaparecer da vida de Rand, vítimas da guerra em Damasco. Uma colega, três funcionários da ópera, o jardineiro, o professor de alaúde… Todos apanhados no meio dos destroços. Ela própria sobreviveu a vários ataques, nem sabe como. “Era Dia da Mãe e eu nem sabia se ia chegar a ver a minha outra vez”, conta-me.
Deixou de ir à universidade, mas manteve o trabalho. Todas as semanas viajava para uma aldeia vizinha, em segredo da família, para dar aulas de música. “Tinha de me esconder, de ter sempre um lenço à mão para cobrir o cabelo, se necessário, cada passo que dava era um risco, tinha até de disfarçar o sotaque, para não saberem de onde vinha”. Dormia numa igreja e as freiras nem lhe dirigiam a palavra, por saberem que não era católica.
“As pessoas têm medo umas das outras, ninguém confia em ninguém. Os grupos tornam-se cada vez mais pequenos, para se salvar a si mesmos. Uma miúda com um pequeno instrumento de prata, de cabelo à mostra e um sorriso… Eram motivos suficientes para as pessoas terem medo. Eles querem dividir-nos em grupos para nos tornar mais fracos e conseguiram que todos tivéssemos medo uns dos outros”.
Foi despejada do apartamento em que vivia, por receber demasiados amigos, e foi viver com a família do namorado. “Durante três meses, naquela casa, só se falava em fugir dali, na rota dos refugiados, na paz na Europa…”.
Rand resolveu partir e, mais uma vez, não estava disposta a ser demovida. Os pais opuseram-se, os irmãos tinham deixado a Síria com vistos de estudante, de avião e em segurança. Mas ela estava decidida. Telefonou à mãe e apresentou-lhe a situação. “Vocês estão a dar-me duas hipóteses: deixar-me no meio da guerra ou manter-me em Sawida sentada em casa. Mas eu vou escolher uma terceira via. Eu vou fazer a viagem, não vou ficar aqui à espera de morrer. Eu estou a morrer. Vi-me morta, a mim mesma, muitas vezes. E sobrevivi. Agora ou morro aqui ou morro no mar. Já nem tenho medo”.
Prometeu aos pais que ia apanhar um barco grande, menos perigoso, até à Grécia e um avião para a Bélgica ou Holanda. Mentiu. Viajou com o namorado e quatro amigos. Não faziam ideia de como cá chegar.
E aqui estamos, sentadas à mesa de minha casa, Rand acaba de receber o direito de asilo. “Durante cinco anos, tivemos medo todos os dias. Depois de atravessarmos o mar, todos tínhamos sonhos. Está na hora de lutar por eles”.
Rand acha que as mulheres devem ser fortes e independentes, que têm de fazer valer a sua vontade. Hoje, ela quer estudar Direitos Humanos e levar uma vida de ativismo. Quer ser feliz na Bélgica e começar de novo, seja lá como for. Só isso. Tudo isso.