O trabalho, por hoje, está concluído. O céu, lá fora, chove a desgraça do mundo e o vento revela a sua ira, agitando com violência as árvores e o manto negro sem estrelas que se ergue sobre todos nós. Esta noite, felizmente, não há refugiados a dormir na rua. Na emergência de dar um teto a todas as pessoas que chegaram, os Médicos Sem Fronteiras disponibilizaram um campo de treino numa área periférica da cidade, onde instalámos mais de uma centena de refugiados, até a situação em Bruxelas voltar à normalidade.
Perante o alerta de ameaça iminente de terrorismo, o centro de imigração encerrou, o Hall Maximilian teve de fechar as portas e até as igrejas onde costumamos alojar famílias passaram as duas tristes noites do fim-de-semana sem refugiados. O Hall reabriu e desdobrámos a nossa equipa para chegar também ao novo campo.
A cidade de Bruxelas voltou à correria habitual e assinala-se o fim de uma semana de grande agitação para todos os voluntários. Nunca mais tive tempo de escrever. Hoje, depois das tarefas concluídas, juntámo-nos numa mesa redonda a conversar até às tantas, a trocar opiniões e piadas, fofocas, sopa quente e sanduíches de atum.
Uma das questões mais debatidas entre os voluntários europeus é o facto de os refugiados sírios terem muito mais hipóteses de receber o direito de asilo que os iraquianos, fugidos de uma situação tão ou mais violenta que a da Síria. A diferença de realidades entre a Síria e o Iraque é apenas, a meu ver, a intervenção ocidental no conflito. O terror e a violência são os mesmos, o seu principal motor é comum: o “Estado Islâmico”. Sírios e iraquianos estão unidos na mesma desgraça, mas a Europa fecha os olhos e impõe restrições, continuando a alimentar uma guerra sem fim à vista.
A terceira cidade do Iraque, Mossul, é dominada há mais de um ano pelo ISIS, o “Estado Islâmico”. Desde então, milhares de pessoas fogem da morte iminente, da opressão violenta e da discriminação
étnica e religiosa. Naquela cidade eles são agora “o sistema”, numa guerra em forma de governo, num desgoverno que preferimos não ver.
O Ahmed e o seu primo Omar são os meus companheiros das teorias da conspiração. São rapazes cultos e informados, estudaram juntos educação e tradução de inglês no Iraque. Entendemo-nos lindamente, falamos a mesma língua. Esta noite, porém, não querem ouvir histórias da maçonaria, não discutimos a organização do mundo, nem o que poderá estar por trás de tudo aquilo que julgamos saber. O nosso amigo Isham está inquieto, a família teve de abandonar a sua casa em Mossul e partir para outra cidade. A violência cresce a cada dia e eles não têm possibilidades de vir para a Europa. Ahmed e Omar compreendem-no bem, também vêm de lá. E procuram dar-me uma explicação para a sua fuga. Para a semana será a sua primeira entrevista no centro de imigração, precisam de explicar a legitimidade de aqui estarem, à procura de asilo, tal como os sírios. É importante para eles recapitular a sua história, organizar as ideias e não perder os detalhes.
Entre 10 e 12 de junho do ano passado, o “Estado Islâmico” tomou o controlo de Mossul. Antes disso, a vida já era difícil, bombardeamentos constantes, um exército corrupto e violento, os sunitas eram perseguidos pela polícia e o quotidiano reprimido pela violência.
Ahmed, sunita, conta-me: “De vez em quando, estava na universidade e um soldado abordava-me, detinha-me numa sala, levava os meus documentos e mandava-me ficar ali, se fosse preciso, uma hora, até voltar e me deixar sair. Só porque sim, para me meter medo, para me pôr no lugar”. Omar diz-me: “Quando o ISIS ocupou a cidade, fiquei contente. Eram rebeldes, não tinham bandeiras, não tinham nome, não sabíamos qual era o seu plano, mas acreditávamos que tudo era melhor que a situação anterior”.
No espaço de duas ou três semanas depois da rendição do exército iraquiano, o “Estado Islâmico” começou a ganhar terreno, a fazer leis, a cobrar impostos e taxas ao comércio local, a controlar a sociedade e a recrutar rapazes da nossa idade, vítimas do terror, para se juntarem ao poder em troca de vingança. Passou a ser proibido, sob penas violentas, fumar, beber álcool, calças justas para os homens, saltos altos e cabelos destapados para as mulheres, circular à hora das rezas, ser cristão… Tudo escrito em grandes cartazes à porta das mesquitas.
Com tristeza, Ahmed diz-me baixinho que, como muçulmano, ficou dividido entre duas duras opções: “Ou te juntas a eles, ou odeias a tua própria religião. Se eu rezar com medo, deixo de acreditar que devo fazê-lo. A relação que tinha com Alá era individual, agora já nem sei se existe”.
Um terceiro rapaz de Mossul, o Qiri, juntou-se à conversa. Depois de a sua faculdade ter sido tomada pelo ISIS e de, por isso, não ter podido concluir os estudos, esperou um ano em casa. Um dia, ouviu falar de um homem que, a troco de dinheiro, conseguia tirá-lo da cidade, tarefa difícil, visto que o controlo fronteiriço estava cada vez mais apertado. A única hipótese que tinha era de partir no dia seguinte de manhã. Voltou imediatamente para casa e contou à família. Apesar da rapidez do processo, ninguém se opôs à sua decisão. Entre choros e abraços, todos acreditavam que era única forma de ele ter um futuro. Fosse qual fosse.
Depois de vários dias de viagem, de passar por bases militares, de trocar de roupa para não ser reconhecido, de dar respostas falsas, de saltar de um carro para outro e de longas partes do caminho a pé, passou seis meses a trabalhar na Turquia. Reuniu o dinheiro necessário para vir para a Europa e cá nos encontramos agora.
O irmão do Qiri tem 17 anos. Há duas semanas, foi apanhado a fumar um cigarro e levaram-no para a prisão, onde sofreu castigos corporais. “Ele já não tem escola há um ano, não tem nada que fazer. Os menores não podem ser presos e ele sabe disso, ficou louco de revolta”, conta-me Qiri, no tom compreensivo e protetor em que vejo o meu irmão mais velho. “E eu não estava lá para o defender, nem que fosse para o acalmar, para lhe pedir paciência”. Passado pouco tempo, o miúdo disse aos pais que ia passar o fim-de-semana a casa de um amigo. Foram três dias de desespero, que acabei por acompanhar, sem notícias.
Incrivelmente, conseguiu escapar a pé, sem ajuda. Atravessou todas as terras que separam Mossul do Curdistão e, quando lá chegou, teve a inteligência de despir toda a roupa que tinha no corpo e aparecer nu, para que o exército não o abatesse, confundindo-o com um bombista do ISIS. Para já está a salvo, entre os curdos, que procuram descobrir como é que aquele rapaz conseguiu lá chegar, sem ajuda de ninguém.
Todos os dias me cruzo com rapazes do Iraque, muitos de Mossul, jovens da minha idade que deram os seus sonhos por irrealizáveis e partiram, cheios de energia para começar de novo e vontade de aprender mais sobre o mundo em que vivemos. Confiam em mim e querem saber tudo, adoram ouvir a história que lhes conto sobre a Europa e o mundo.
A 12 de junho de 2014, quando o ISIS tomou a cidade, Ahmed estava à varanda de sua casa. Presenciou a rendição do exército enquanto fumava um cigarro, o que mais tarde passou a ser proibido. É certo que, desde 2003, o dia-a-dia no Iraque foi sempre imprevisível, mas revela-me que nunca poderia prever, há
um ano, uma mudança assim tão radical para a sua vida. Vejo-o pensativo e desejo perguntar-lhe quais eram os seus sonhos. Prefiro não o fazer e voltar aos temas do costume. A sua serenidade é preciosa para todos os que aqui estão, até para mim, que já me habituei a vê-lo sempre forte.
Por hoje, fico-me pela realidade assustadora em que os meus amigos viveram e passo com eles um serão caloroso no canto do mundo onde, provavelmente, nunca imaginaram vir parar. Anseio que a Europa entenda que eles fogem da mesma guerra e que lhes dê a oportunidade de se juntarem à nossa paz.
A tempestade acalmou lá fora e eu digo-lhes que está na hora de irmos dormir, que amanhã cá estarei e que, quando o processo de asilo terminar em bem, porque assim terá de ser, poderemos aprender muito mais coisas e construir um futuro melhor, em conjunto, para a Europa e para o mundo.