É verdade que António Costa foi de uma ingenuidade política inesperada. Os socialistas amigos acrescentarão meia dúzia de adjetivos menos simpáticos, lamentando a imprudência do líder, que já devia saber que não há lugares seguros para um chefe da oposição dizer bem do Governo, nem que seja parcialmente, nem que seja dentro de um contexto bem explicado e enquadrado, nem que seja apenas para chinês ver. E os outros, os “não amigos”, esfregam as mãos de contentes, gozando com o inesperado deslize do experiente Costa. Ou, em alternativa, explodem de indignação perante tão grande afrontamento, como fez Alfredo Barroso – será que esperava com o seu gesto precipitar um mar de demissões que levasse à demissão do próprio Costa?
Mas o que disse Costa aos chineses que não seja uma verdade por demais evidente? Não é inegável que o País está muito melhor do que há quatro anos em tudo o que é fundamental para um investidor externo? Que o País oferece hoje muito menos risco do que aquele que tinha há quatro anos? O que esperavam os “barrosos” do PS que o seu secretário-geral dissesse aos investidores estrangeiros? Que chorasse nos seus ombros o aumento do desemprego, da pobreza, das desigualdades sociais, os problemas da saúde, a diminuição das prestações sociais? O que têm os chineses a ver com tudo isto? Não são problemas nossos?
A seguir a Alfredo Barroso, o primeiro a dar dimensão ao “flop” de Costa, seguiu-se o coro de laranjinhas a regozijar-?-se com o “fugir da boca para a verdade” do líder socialista. Não cabiam em si de contentes. Como se o País tivesse, de facto, ficado melhor com as palavras de Costa…
A verdade é que os “barrosos” do PS estão para o interesse nacional como vários dos nossos estimados ministros mostraram estar para o seu umbigo. Em vez de agradecerem o sentido de Estado do político, preferiram explorar as tricas baixinhas da politiquice. Parece que o mundo não deixa nunca de girar ali, ora à volta da oposição ora à volta do Governo, mas sempre à volta do partido, espécie de vaca sagrada que vale mais do que tudo, que a verdadeira política e que o interesse nacional. Como se vê. E como já cansa.
Com Costa na berlinda e Passos Coelho em alta, a entrevista ao Expresso revela um primeiro-ministro superconfiante, a bater-se não apenas por uma vitória nas próximas legislativas mas também por uma vitória com maioria absoluta. E tem até sondagens que lhe permitem falar desse objetivo sem que o acusem de ser lunático. É ele a garantia de estabilidade que afasta todas as surpresas que se escondem na demagogia ou no silêncio dos outros. Com ele, já os portugueses sabem com o que contam, mesmo ?quando é duro e difícil.
Mas os portugueses não contavam com o caso do não pagamento dos descontos para a Segurança Social por Passos Coelho. Desta vez não foi a boca que fugiu para a verdade. Foi antes uma verdade que, de um lado, engasga, e, do outro, é difícil de engolir. Cinco anos de distração é muita distração junta. É difícil de explicar, mesmo que seja a mais pura das verdades. Os que não caíam em si de contentes passaram a incomodados. ?E os outros agradeceram a nova distração: “digam piadas sobre a história do País que melhorou em quatro anos, e já veem com o que levam com a história dos descontos para a Segurança Social.” Em apenas ?um dia, a confiança de Passos Coelho cedeu lugar à estratégia de antecipação ?e redução de danos, com a ajuda dos ?spin doctors do costume.
Não acredito em santos, e muito menos em políticos santos. E tenho sempre receio da cegueira daqueles que julgam sê-lo, sobretudo quando são políticos. Mas acho também que a política, por muito jogo de cintura que exija, terá de ter sempre um nível mínimo de decência que não se confunde, nem começa apenas, nas situações de verdadeiro crime. Um patamar que não é claro, mas que terá sempre de ser encontrado, em primeiro lugar, pelos próprios atores da política. Pelos que ficam em situações comprometedoras, desde logo, mas também pelos que têm a possibilidade de acabar com elas e garantir que a política não cai, toda ela, num mar de descrédito.
No limite, quando isto não funciona, é porque, afinal, não era assim tão grave. ?E se era, cá estaremos nós, eleitores, a fazer o julgamento que nos compete na altura certa.
O que na verdade gosto cada vez menos é dos inúmeros treinadores de bancada, sempre prontos para fazer de juízes da moral e dos bons costumes. Sempre sem dúvidas ou contemplações. E quase sempre com dois pesos e duas medidas, prontos a desculpar os amigos nas situações mais insustentáveis e prontos a crucificar os adversários pelas coisas mais triviais. Podem não dar por isso, mas são eles a principal fonte de descrédito da democracia.