Dói até à raiva que os sistemas públicos de educação, saúde e segurança social, apesar de terem produzido resultados tão incontestáveis na melhoria de vida dos portugueses e serem baratos e sustentáveis, estejam a ser destruídos com o único objetivo de tornar os serviços que prestam pasto fértil da rapina dos lucros fáceis e chorudos. Dói até à raiva que os direitos dos trabalhadores e a concertação social sejam esmagados e a Comissão Europeia se oponha ao aumento do magro salário mínimo. Dói até à raiva que, só por razões ideológicas, se ponha de lado tanto conhecimento acumulado sobre o funcionamento do sistema judicial, para produzir o caos da insegurança jurídica dos cidadãos e das empresas. Dói até à raiva que a PT, até há pouco a menina dos olhos do desenvolvimento português, seja roubada por piratas impunes, e mesmo premiados, e vendida ao desbarato. Dói até à raiva que tudo isto seja normal, business as usual, e que anormal é pensar que podia ser doutro modo. São três as perguntas dos portugueses. Como é possível que em três anos se tenha destruído quase tudo o que se construiu em quatro décadas? Como é possível que essa destruição ocorra em democracia, embora ela tenha uma intensidade que historicamente só as ditaduras permitem, como bem ilustra o caso do Chile de Pinochet? Se não há saída deste filme de horror para nós, haverá ao menos para os nossos filhos ou para os nossos netos? Concentro-me na última pergunta, a que mais nos interpela neste momento, pois não haverá saída se nada fizermos por isso.
Que fazer, pois? As condições são difíceis. As soluções obrigam a repensar o País e a definir uma estratégia de longo prazo, mas as eleições aproximam-se e neste contexto só pensa no longo prazo quem não tem poder para intervir no curto prazo. A UE transformou-se num algoz que segura o baraço bem apertado à volta do nosso pescoço. Se a dívida não for renegociada e o Tratado Orçamental anulado, nem vale a pena pensar no longo prazo como país da UE pois, nesse caso, a longo prazo é o curto prazo por extenso. A sociedade civil portuguesa tem pouca tradição de organização formal e é pouco capaz de impor, dentro e fora das instituições, uma transformação do sistema político que torne a classe política mais responsável e menos corrupta. Por exemplo, é pouco provável que possa surgir em Portugal um novo tipo de partido-movimento, como o Podemos em Espanha.
As possíveis saídas de longo prazo são duas: dentro de uma UE muito diferente da atual; fora da UE ou, pelo menos, fora do euro. Para serem saídas positivas terão de vir da esquerda, mas só se a esquerda superar a sua fatal divisão. O PS de António Costa, preocupado com o curto prazo, vai tentar uma terceira saída: obter da atual UE um tratamento especial que permita aliviar a corda e fazer do alívio uma alavanca para voos mais arrojados. Para aumentar as probabilidades de êxito é crucial contar com um largo consenso que envolva a esquerda à esquerda do PS menos radical e a direita menos conservadora. A resposta da direita dependerá da grandeza da derrota nas próximas eleições.
A esquerda sabe que, em geral, tenderá a perder votos e vai estar dividida entre três campos. O PCP, a sua fração mais consolidada, vai continuar a defender que o PS é uma variante da direita e estará indisponível para consensos. O Manifesto/Livre, a sua fração menos consolidada, vai procurar contribuir para o êxito da estratégia do PS, pressionando a preparação para o longo prazo, sem com isso se diluir no meio dos profissionais do pragmatismo (uma tarefa muito difícil). O BE, já fracionado, vai fracionar-se ainda mais entre os dois campos anteriores.
É talvez quem tenha mais razão e quem mais perderá por tê-la.
Se a esquerda se convencesse de que a direita está à espera que a esquerda inutilmente radical seja radicalmente inútil para assim tentar controlar o PS e de que isso é o fim da esperança no curto e longo prazo, talvez pensasse em se despolarizar internamente para poder polarizar construtiva e eficazmente com o PS.