O projeto político que é a União Europeia, olhado do pós-guerra aos dias de hoje, é uma das mais fantásticas realizações da História. Cheio de fragilidades e contradições, em permanente dúvida e luta pela sobrevivência, mas, ainda assim, com uma história ímpar de promoção da paz, de aproximação de diferentes povos e culturas, de solidariedade, de democracia política, económica e social, de liberdade (de todas as liberdades) e de humanismo. Por tudo isto, o Nobel da Paz acabado de atribuir à União Europeia seria mais do que justo e merecido. Deixa, porém, um travo amargo na boca. A Europa de hoje merece um Nobel?
Considerando o que se passa em vários dos seus Estados-membros, o que é dito por dirigentes de outros tantos, o “desenho” das ajudas concedidas às nações que delas precisam, e o conjunto de políticas que se instala nos diversos países, muitas das quais são induzidas pelo “diretório” europeu (diretório que é, “de facto”, ele próprio, um símbolo de desvirtuamento), não é pacífico que esta União Europeia merecesse este Nobel nos dias que correm. Muito teria de ser diferente, muito teria de ser travado e redirecionado, para que honrasse este Nobel no futuro.
É verdade que, apesar de todas as crises, a União Europeia que hoje temos é ainda um dos melhores sítios do mundo para se viver, quer em termos materiais, de prosperidade média relativa dos seus cidadãos, quer em termos de direitos políticos e sociais e de respeito pela dignidade e integridade das pessoas. Mas é necessário, também, reconhecer que esta já não é a mesma Europa de outros tempos e que está a mudar, rapidamente, para caminhos que não são, por tradição, os nossos. E, fruto de tudo isto, já não sabemos também como é que será esta Europa, no médio prazo.
A distinção da Academia de Oslo tem sabor a nostalgia. Não é um prémio pelo que se está a fazer – não faz sentido que seja. É pelo que se fez. Mas era bom para todos nós que fosse algo mais que um mero epitáfio de um projeto que a todos orgulha. Era bom que servisse, também, de inspiração para acordar vontades e para inverter caminhos.
A desilusão com a Europa não é uma perspetiva de quem vive uma grave crise em Portugal, na Irlanda, em Espanha, em Itália e, por muito fundada razão, na Grécia. Terá de ser a desilusão de quem sabe olhar, com olhos de ver, o que se passa nesses países e poderá acontecer noutros, já a seguir. Terá de ser a desilusão de quem olha para o mundo e vê a Europa a tornar-se cada vez mais igual a todos os outros territórios, e já não o exemplo que outros procuram seguir.
É a desilusão de ver uma Europa partida em diversas agendas egoístas e divergentes, incapaz de afirmar globalmente uma linha de atuação coletiva que coloque o cidadão no centro da política. É a desilusão de ver uma Europa incapaz de escapar à lógica global da competitividade que coloca em segundo lugar as pessoas e tende a tornar tudo igual, seja aqui, seja nos Estados Unidos ou na China. E se uma tal desilusão não for coletiva, então esta já não é, seguramente, aquela mesma Europa que mereceu este Nobel.
No meio do crescente caos de pobreza que se instala no espaço europeu, que assusta o mundo e vai abrindo caminho a todos os cenários extremistas e populistas – na Grécia, na Espanha, em França, em Itália ou mesmo em Portugal -, esperemos que este Nobel ajude os dirigentes europeus a redescobrirem o que tem de especial a Europa. E que, neste “processo que a Europa atravessa, e que vai ainda apenas a meio”, como afirmou Merkel, encontrem espaço para o que a Europa tem de diferente e que vale a pena preservar. Porque as alternativas são duas e ambas demasiado más para serem consideradas: a primeira é a União Europeia colapsar, e a segunda é passar a ser igual a qualquer outro lugar do mundo. São duas opções más, para nós, europeus. Mas são também opções más para os restantes povos do mundo, porque é aqui, nesta Europa, que ainda se encontra inspiração para se criar um mundo melhor.
De todas as formas, fica a satisfação e o registo, justo, de ver Durão Barroso como uma das figuras centrais, na cerimónia que decorreu na Academia de Oslo. Ele é, apesar de todos os “descaminhos” da UE nos últimos tempos, uma das figuras que mais se têm batido por aquela Europa que vale a pena salvaguardar e que seja digna, no futuro, do Nobel da Paz com que foi agora distinguida.
Santos Pereira considerou, em Bruxelas, que as medidas de proteção ambiental, na Europa, estão a causar perdas de competitividade industrial para outros pontos do globo, e afirmou que “ser mais papista que o Papa” só poderá acabar em importações (que seriam desnecessárias) de bens produzidos noutras partes do globo, com regras ambientais menos severas.
Pois é. Resta saber se a culpa é da galinha ou do ovo. É que o raciocínio é igual em matéria de salários, de impostos, de proteção na doença e no desemprego, na existência de leis laborais e de todo o tipo de direitos, incluindo os direitos à Justiça e ao voto, que também custam dinheiro e alguém tem de pagar, através de impostos. Também aqui é tramado ser mais papista que o Papa e tudo acabar com mais importações de países onde nada disto existe.
A dúvida é a de saber se devemos acabar com tudo isto ou se devemos escolher melhor os nossos parceiros comerciais. E é por dúvidas como esta que este Nobel atribuído à União Europeia suscita tanta polémica nos dias que correm.