Era Sócrates membro de um Governo de Guterres, numa altura em que tinha a seu cargo a defesa do consumidor, quando tentou fazer aprovar legislação para combater o excesso de endividamento das famílias, ideia que passava por corresponsabilizar os credores (a banca, sobretudo) pelas situações concretas de sobre-endividamento dos cidadãos. Intenção que, na altura, mereceu muitas críticas, pelo paternalismo subjacente. Hoje, temos de o reconhecer, a iniciativa mereceria outra atenção. Assim como hoje, é necessário também dizê-lo, é uma pena que Sócrates não pensasse (e tenha continuado sem o fazer) da mesma maneira em relação ao sobre-endividamento do Estado. Se tal tivesse acontecido, já tínhamos responsabilizado alguém por alguns contratos duvidosos. E, se calhar, também não estaríamos a apanhar hoje com o paternalismo alemão.
Luís Campos Ferreira, presidente da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas, faz um balanço cristalino da análise e discussão parlamentar das Parcerias Público-Privadas. As PPP são, segundo declara em entrevista ao Jornal de Negócios, “uma bomba-relógio com retardador”. Sejam as autoestradas com portagens virtuais, sejam outros tipos de parcerias da mesma natureza entre as administrações públicas e empresas privadas, no âmbito da Saúde ou da responsabilidade das autarquias, serão situações explosivas adormecidas, que rebentarão um dia na mão do Estado, ou seja, nas nossas mãos.
A situação é de tal forma dramática que a Assembleia da República ficou sem saber exatamente quanto é que o Estado deve em PPP, quanto é que terá de pagar anualmente e até quando terá de pagar pelos projetos já executados ou contratos em curso. Pior, Luís Campos Ferreira tem fortes receios do que se poderá descobrir, quando começar o levantamento das PPP celebradas entre privados e autarquias. E, por muito inacreditável que pareça, o deputado do PSD é taxativo quando afirma que, em relação às PPP já contratualizadas mas ainda não executadas, “não podemos entrar na tontaria da discussão do que é mais barato: fazer [as obras] ou pagar aos privados [as indemnizações]”. Porque, segundo diz, não as podemos fazer nem tão-pouco podemos pagar: “Temos de encontrar uma solução jurídica. Isto para o que está por fazer. O resto tem de ser tudo negociado.”
A frase é chocante. Não pelas mesmas razões da célebre e recente declaração de Sócrates de que “as dívidas públicas não são para pagar”, afirmação de uma bizarra convicção. Neste caso, pelo contrário, o que é chocante é a declaração de que o Estado não deve sequer discutir a execução dos contratos que assinou, porque não tem como os cumprir. A resposta tem sempre de ser outra. A mesma que qualquer outra pessoa, “não-Estado”, teria de dar, a de procurar uma solução alternativa junto do credor.
O Estado tem de cumprir com os seus compromissos, sejam externos sejam internos. Não é só por uma questão de princípio, é porque é fundamental para que tudo o resto funcione. Mais uma vez, quer se trate de dívida ao exterior ou de dívida a agentes nacionais, não há Estado digno desse nome que não cumpra com as suas obrigações. Como também não há país, não há comunidade política organizada, que funcione sem o respeito por esse princípio. A não ser que o credor não o mereça…
O que nos leva a uma outra questão, prévia à primeira – e que não é teórica, já que o próprio presidente da Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas a levanta. De que forma foram, em cada uma das PPP, devidamente (diligentemente) salvaguardados os interesses do Estado? Foi cada um destes compromissos ponderado e enquadrado, quer do ponto de vista legal quer do ponto de vista da sustentabilidade e responsabilidade financeira? Foi o interesse público determinante, e devidamente salvaguardado, nestas PPP, ou andou alguém a favorecer outrem à custa dos dinheiros públicos e com prejuízo do Estado? A resposta a esta pergunta continua a ser essencial. Porque ela é prévia a qualquer decisão de pagamento ou não pagamento. E é também fundamental para se exigir responsabilidades a privados e governantes, ou não o fazer.
As audições na Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas não foram conclusivas nesta matéria e, segundo afirma o seu presidente, é duvidoso que uma comissão parlamentar de inquérito conseguisse ir muito mais longe. Resta, por isso, à Procuradoria-Geral da República, entidade a quem cabe promover, junto dos tribunais, a defesa dos interesses do Estado, dar esse passo – e, como afirma Campos Ferreira, “qualquer procurador ouviu o que se disse sobre as SCUT e as PPP”.
É fundamental, hoje mais que nunca, que as coisas fiquem devidamente esclarecidas. Por mim, não gosto de ouvir um deputado da maioria governamental dizer que o Estado não deve pagar uma dívida a um privado, mesmo que seja por não ter dinheiro. É um precedente muito perigoso. Mas esse mesmo deputado terá todo o meu apoio no dia em que se descobrir que essa dívida tem origem num negócio que foi celebrado com má-fé, abuso de poder e subordinação do interesse público a interesses privados ilegítimos. Nos tempos que correm, com tantas famílias e empresas em estado crítico de sobrevivência, seria verdadeiramente criminoso cumprir com um único contrato suspeito.