O Chico Buarque tem uma canção em que diz que ‘a dor da gente não vem nos jornais’. E hoje foi um desses dias, em que a notícia esteve lá mas a emoção não: é provável que, de uma forma ou outra, jornais e televisões tenham referido o último dia de aulas, mas ninguém noticiou a forma sentida como a rapariga de saia aos folhos gritou, durante a festa na Escola António Chora, em Riachos, “viva o 9ºB!” e, de seguida, foi abraçada, num gesto lento e colectivo, por todos os seus colegas. Para o ano haverá outra escola, e o dia tão ansiado, o do último dia de aulas, parece de repente um pesadelo: não haverá mais aqueles amigos, aqueles professores, aquela rotina, aquele aconchego. E o que a rapariguinha sentiu é provavelmente a mesma tristeza – a mesma dor que não vem nos jornais – que trespassou qualquer menino que terminou agora o 4º ano e teve um professor tão bom que quer ter 9 anos para sempre para ficar na mesma escola.
O bom professor também se comove com o aluno que parte, e na António Chora, a julgar pelo ambiente fantástico que se sente por toda a escola, deve haver muitos. Cláudia Valadares é intérprete de Língua Gestual – quer isso dizer que está na sala de aulas traduzindo para os alunos o que o professor está a dizer. Na verdade, Cláudia é uma espécie de segunda professora: ela tem de ajudar a fazer compreender conceitos que muitas vezes não existem em língua gestual. Como conde, por exemplo – existe um gesto para rei, mas não para conde ou para nobreza. Não sei como se dirá em Língua Gestual que, pela hora de jantar, quando uma brisa começou a percorrer o pátio da escola e os primeiros alunos recolheram a casa, Cláudia tinha os olhos vermelhos e pequeninos.
A meio da tarde, a professora Adília tinha perguntado se já havia alguém a chorar. Não, ainda não. Por aquela altura, só a Daniela, aluna do 7º ano, entrava e saía nervosamente da sala de apoio. Ia actuar com o grupo de Ginástica na festa de final de ano, e o medo do palco fá-la vomitar. Adília, como a tratam os alunos, coordenadora do grupo que apoia os 18 alunos com dificuldades de audição desta escola de referência para o ensino de surdos – que é também escola de referência para a multideficiência -, terá os olhos bem enxutos, pelo menos até nós deixarmos a escola, já depois das 9 da noite. Enxutos não, porque na verdade os olhos dela parecem sempre mel – encantam-se cada vez que olha para algum destes alunos.
Para a festa de final de ano, a escola está toda enfeitada com pequenas bandeirinhas esvoaçantes de santos populares. Estão montadas uma série de barraquinhas, organizadas pelos professores, que vendem comida, rifas, bolos, minerais, e dão gatos para adopção. As portas estão abertas, para receber os pais e as famílias; na verdade, para receber quem quiser vir. Há muito para mostrar: a escola tem muitas actividades e tem ganho prémios e distinções.
Os alunos da António Chora ainda não têm idade para sair à noite. Mas nos barulhentos bares da Praia da Areia Branca, Lourinhã, onde escrevo agora estas linhas, deve haver com toda a certeza quem adie a despedida dos colegas e amigos da escola. A tal dor que não vem nos jornais.