Um dos mais repetidos males do nosso país, persiste há tanto tempo que muitas gerações adultas nunca ouviram da Justiça senão os problemas. Paralisado, o sistema de Justiça português é paralisante.
A partir de meados da década de 1990, o número de processos pendentes nos tribunais judiciais portugueses cresceu exponencialmente. Em, 2010, passada década e meia, os cerca de 660 mil processos pendentes dispararam para quase 1,7 milhões, segundo dados disponíveis na Pordata. Em contrapartida, o número de processos findos não tem aumentado. Avolumam-se, assim, os processos por resolver, nos tribunais, o que conduziu a uma situação de congestão crítica – em 2010, por cada 100 processos findos havia 235 processos pendentes que continuavam à espera de uma decisão. Desde 1960, nunca se atingiu um valor tão alto – deste ponto de vista, nunca a situação foi tão grave.
É certo que os processos se tornaram mais complexos, que os arguidos têm mais direitos, que a ação dos advogados é mais livre e que a judicialização do mais banal ato da vida quotidiana aumentou a pressão sobre os tribunais. Mas também é certo que, com uma média de 31 juízes e procuradores por 100 mil habitantes, Portugal era, em 2008, o terceiro país com uma relação mais favorável, dos 16 que o Conselho da Europa considerava terem sistemas judiciários comparáveis[1]. À nossa frente, apenas a Polónia e a Alemanha[2]. Nessa data, segundo o mesmo relatório, o total dos profissionais do sistema de Justiça português – advogados, notários, procuradores e juízes – era de 295 por 100 mil habitantes, o segundo mais favorável, apenas atrás da Itália.
Com um vasto corpo de profissionais qualificados, nem por isso o sistema é célere. Pelo contrário. Em várias situações, os prazos aumentaram. Entre meados dos anos 90 e 2009, a realização de um despejo passou de uma média de 16 meses para 20 meses; uma reivindicação de propriedade mediada pelo tribunal, de 21 para 33 meses; um inventário, operação necessária no arrolamento de bens legados por morte, de 24 para 43 meses; a resolução de uma dívida, de 9 para 18 meses. Os divórcios, pelo contrário, passaram de 12 para 11 meses – mas a lei foi alterada, tendo-se eximido os que são realizados por mútuo consentimento da intervenção de um juiz.
Contas feitas, o panorama não é nada animador. Segundo dados do relatório do Conselho da Europa, só o stock de processos pendentes nos tribunais portugueses, ao ritmo atual da administração da Justiça, demoraria cerca de 430 dias a julgar.
Apesar de o país dispor de uma ratio elevada de juízes medianamente pagos – o estudo do Conselho da Europa estima que o salário de um juiz no topo de carreira seja, em Portugal, 4,2 vezes superior ao salário médio nacional, em linha com a média na Europa -, a Justiça é também menos produtiva. Tem havido quebras sucessivas do número médio de processos finalizados. Em 2010, cada juiz findou, em média, 386 processos, o valor mais baixo desde 1960.
O retrato da Justiça aqui apresentado não é extensivo – mas é honesto e claro. Estes são os indicadores usados em todo o mundo para analisar a performance de sistemas judiciários, não só o português. E revelam situações preocupantes, de baixa produtividade e elevada lentidão, com implicações em todo o País, a nível civil, económico e social, percebidas e sentidas dentro e fora de fronteiras.
A Justiça não é mais um assunto de acesso reservado a uma parcela restrita da população – é um caso sério, que nos afeta a todos. E que nos paralisa.
[1] Conseil de l’Europe, CEPEJ rapport 2010 (données 2008). Disponível em www. coe.int.
[2] Os sistemas jurídicos considerados correspondem aos seguintes territórios: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Escócia, Espanha, Finlândia, França, Inglaterra e País de Gales, Itália, Noruega, Países Baixos, Polónia, Portugal, Suécia e Suíça.
Para saber mais sobre estes e outros temas da sociedade portuguesa nos últimos 50 anos, consulte Portugal: os Números, o livro dos autores publicado na coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos