<#comment comment=”[if gte mso 9]> Normal 0 false false false MicrosoftInternetExplorer4 <#comment comment=”[if gte mso 9]> <#comment comment=” /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:””; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:”Times New Roman”; mso-fareast-font-family:”Times New Roman”; mso-ansi-language:PT; mso-fareast-language:PT;} @page Section1 {size:595.3pt 841.9pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:35.4pt; mso-footer-margin:35.4pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} “> <#comment comment=”[if gte mso 10]> Quem está lá dentro a mexer-me nas coisas tentando não fazer barulho, em bicos de pés para aqui e para ali? Há alturas em que me parece ouvir assobiar, há alturas em que me parece ouvir rir para a palma da mão, baixinho, a troçar de mim. Se calhar mete-me os instrumentos da barba num saco e desaparece pela janela das traseiras, se calhar leva-me roupa, o despertador, o pratinho da mesa de cabeceira com chaves e moedas. Não me atrevo a levantar-me, não me atrevo a ir ver. Será melhor fechar à chave a porta da sala, bater a chávena do café na mesa para o assustar ou permanecer assim, como se nada fosse, transidinho de medo? Escolho permanecer assim, transidinho de medo, à escrita, e lá anda o assobio, lá anda o riso, os gongos do armário a darem sinal num gemido comprido. Que tenho eu no armário para além do sobretudo e de revistas velhas? O álbum de retratos da minha mãe cheio de defuntos pouco nítidos, um cestinho de verga com violetas de pano, almanaques antigos e sobretudo a agenda em que escrevia versos que nunca me atrevi a mostrar. Alguns são bonitos, acho eu, falam de piqueniques e procissões. E o soneto de quando melhorei da ciática, dedicado a São Teotónio porque cá em baixo, em letras miúdas, era dia de São Teotónio, e visto ser São Teotónio quem estava de serviço foi ele, mais as injecções, que me livraram das dores. Acho bem que os santos façam turnos como os enfermeiros e os polícias, deve ser cansativo gastar o tempo todo em milagres, meter empenhos a Nossa Senhora, convencer Deus que já está velho e teimoso, estender a caneta para Ele assinar a autorização, levar a autorização ao carimbo, mandá-la para a Terra, essas maçadas. Repartições lentas de anjos preguiçosos, o bengaleiro cheio de asas penduradas, pó de nuvens por todo o lado que as onze mil viagens não limpam, mas quem está lá dentro a mexer-me nas coisas tentando não fazer barulho, em bicos de pés para aqui e para ali, quem me parece ouvir assobiar, quem me parece ouvir rir para a palma da mão, a troçar de mim? Desde pequeno tenho a mania que troçam de mim, me observam à socapa, me criticam. Os colegas da escola, por exemplo, o professor
– Onde nasce o Mondego ó tu que fumas?
a telefonista do emprego, de aparelho entalado entre o ombro e a bochecha, a corrigir o verniz das unhas com o pincelzinho. Chama-se Fernanda, é mais alta que eu, no outro dia apanhei-a a murmurar
– Fofinho
no bocal, numa espécie de gemido que me levantou a alma, e eu envergonhadíssimo por a alma se levantar assim, de garfo no bolso das calças a disfarçar-lhe os arroubos. Há alturas em que o espírito se manifesta de maneira inoportuna. Gostava de poder dizer
– Fernanda
cá de baixo, derivado ao seu tamanho e ela, em resposta
– Fofinho
no bojo do casaco de peles sintéticas que lhe fica a matar, desprendendo o cabelo da gola. Usa brincos compridos com sininhos que tilintam, um anel no polegar, um diamante
(deve ser um diamante)
um diamante minúsculo entre as sobrancelhas. Às quintas há um sujeito de bigode à espera num automóvel de dois lugares, achatado como uma cigarreira. Nem sei como consegue enfiar-se naquilo, nem sei como o bigode lá cabe. Será ele o Fofinho ou haverá outros Fofinhos escondidos por aí, maiores do que eu, a darem-lhe beliscões na bochecha
– Sua má, sua mazona
num parque de estacionamento discreto, os sininhos dos brincos tilintam como loucos e o tu que fumas nem sequer com ciúmes, resignado. Uma das escriturárias dá ares de ter pena de mim, de se interessar pela minha pessoa mas nem casaco de peles nem anel no polegar, uma roupita triste, uns olhos que pingam. Tratamo-la por Dulce, que é um nome que não vai bem com a sua magreza nem com os sapatos que lembram caixas de violino. Olho-a e a alma permanece num repouso distraído, inamovível. Não acredito que seja capaz de um
– Fofinho
porque rói as unhas, quando muito solta um
– Bichaneco
que gela o mundo e acabou-se. Se calhar é a Dulce quem está lá dentro, a mexer-me nas coisas com os dedinhos tortos, só que não a imagino a assobiar nem a rir. Abraçou uma seita religiosa qualquer e aposto que foi o único abraço que deu na vida. Pode ser que encontre a agenda dos versos no armário, pode ser que simpatize comigo. O melhor é continuar assim quietinho, na esperança que se vá embora, na esperança de não escutar nenhum
– Bichaneco
através da porta fechada. O melhor é não tentar sequer um
– Dulce
sumido: oxalá salte a janela depressa, levando tudo o que me pertence.