A canonização de D. Nuno Álvares Pereira é, evidentemente, um motivo de orgulho para o País. O milagre que o novo santo operou em Guilhermina de Jesus, de 65 anos, natural de Vila Franca de Xira, pode não ser dos maiores – mas conta. A senhora estava em casa a fritar peixe quando um respingo de óleo a ferver lhe lesionou o olho esquerdo. Nuno Álvares viu a conjuntura propícia à santidade, e não falhou: curou-lhe a úlcera na córnea e prestigiou-se a si e a nós. Os portugueses sempre tiveram uma grande capacidade de se prestigiarem por interposto compatriota. Normalmente, o compatriota está vivo e pratica um desporto qualquer, mas um homem que está morto vai para 580 anos e cura úlceras na córnea a partir da eternidade também prestigia.
Contudo, receio bem que D. Nuno Álvares Pereira, que é santo há tão pouco tempo, já esteja a arranjar problemas com colegas que são santos há mais de 1500 anos. Refiro-me especificamente a Santo Agostinho, o santo que explicou a razão pela qual Deus, sendo embora omnipotente, omnisciente, omnipresente e infinitamente bom, permite que haja mal no mundo. A razão é o livre arbítrio: Deus concedeu a liberdade ao homem, que desfruta dela como entende, e é por isso que Ele não intervém quando os homens se matam uns aos outros. Ficou explicada a existência do mal moral. E o mal natural explica-se da mesma maneira: as catástrofes naturais são, também elas, causadas pela liberdade concedida por Deus, desta vez a Satanás e seus acólitos. É por isso, dizia Santo Agostinho, que Deus não salva ninguém das grandes catástrofes naturais, sejam elas um tsunami, um terramoto, ou um respingo de óleo a ferver para o olho. E, no entanto, Nuno Álvares Pereira intercedeu em nome d’Ele para curar a córnea de Guilhermina de Jesus. Como entender, então, a façanha oftalmológica do novo santo? Talvez Deus tenha interrompido por momentos o princípio do livre arbítrio para permitir a ocorrência de uma acção pedagógica. Pode ter sido um trabalho de equipa: Deus alerta Guilhermina de Jesus para os malefícios dos fritos respingando-lhe óleo a ferver para o olho, e Nuno Álvares, depois de aprendida a lição, intervém para lhe salvar a córnea. Os caminhos do Senhor são misteriosos e, como é cada vez mais evidente, até Santo Agostinho se perde neles.
O que interessa é que o milagre foi feito, registado, e levado em conta na beatificação de Nuno Álvares Pereira, para gáudio de Cavaco Silva. O Presidente da República suspendeu por instantes o preceito da separação entre Estado e Igreja e integrou a comissão de honra da canonização. Há quem diga que as congratulações do Presidente da República a propósito de um caso estritamente religioso violam o princípio da laicidade do Estado, mas se Deus interrompeu o livre arbítrio para prestigiar o nosso país, o mínimo que o Presidente pode fazer é mandar a laicidade às malvas para agradecer.