O drama de Quim, guarda-redes do Benfica e da Selecção Nacional, é apenas um capítulo de um longo historial de penúria nas balizas nacionais. Portugal, que luta com um défice de pontas-de-lança de qualidade, é, sobretudo, um país sem escola de guarda-redes. “Desde Manuel Bento que não temos um guarda-redes português indiscutível”, alegam muitos saudosistas, em especial, adeptos do Benfica. É verdade que Bento era um bom guarda-redes. Mas não era um guarda-redes de classe mundial. Ele foi o penúltimo – o último foi Vítor Baía – de uma linhagem de guarda-redes carismáticos, o que é diferente de guarda-redes excepcionais. Bento era espectacular, sobretudo, pelo facto de ser tão baixo (menos de 1,70m). E era isso que fazia com que as suas defesas ficassem na retina. Os seus voos acrobáticos de homem-elástico eram-lhe vitais para chegar a bolas que outros agarravam quase sem saltar. Tinha outra característica, hoje rara: foi o mais corajoso dos guarda-redes portugueses, colocando a cabeça onde os avançados hesitavam em pôr o pé. Mas a sua morfologia, que o limitava, impedia-o de ser um guarda-redes de classe mundial. E dificilmente se teria imposto num dos grandes campeonatos europeus. Contemporâneo de Bento, havia Vítor Damas, um carismático e um histórico do Sporting. Mas era um jogador de “engate”. Infelizmente, quando teve de substituir o lesionado Bento, no México, contra Marrocos, não engatou… Antes deles havia Costa Pereira, o primeiro guarda-redes português a sair de entre os postes e a cobrir toda a grande área. Ele foi o percursor, em Portugal, da saída em salto com o joelho à frente. Um forma de protecção que deixava o seu raio de acção inviolado. Depois dele, todos o imitaram. Tinha, também, escola de basquetebol, o que lhe dava um poder de elevação nunca visto. Mas a sua falta de classe verdadeiramente mundial estava patente na sua alcunha: o Costa dos Frangos. O que custou ao Benfica, pelo menos, uma Taça dos Campeões Europeus… Costa Pereira tapou o lugar ao suplente Bastos, o homem que inventou a estirada com o braço contrário ao do sentido da bola. Isto é, quando uma bola ia para a direita, ele voava, torcendo o tronco, e defendendo com o braço esquerdo. E vice-versa. Isso permitia ao corpo um poder de impulsão e uma capacidade de reacção muito mais veloz. Mas Bastos estava em fim de carreira quando o Benfica arrasou na Europa e perdeu o lugar contra o inovador Costa Pereira. José Henrique antecederia Bento, na baliza do Benfica, granjeando a alcunha de “Zé Gato”. Pelos saltos felinos, novamente tornados essenciais por uma baixa estatura. Em 1966, à falta de melhor, Portugal teve de alinhar com Zé Pereira. O esforçado guarda-redes do Belenenses estava uns furos abaixo da classe dos companheiros. E Portugal, que tinha o melhor futebol, não foi campeão. Onde é que já vimos este filme, recentemente?… Carlos Gomes (Sporting) ou Barrigana (Porto) são outros dos históricos que ficaram na nossa memória colectiva. O primeiro tinha, porém, no comportamento errático, um handicap. E o segundo, da velha escola, perdeu, por falta de competição, o comboio das novas tendências do futebol mundial, que despontavam na sua época. Entre os mais recentes, destaca-se, claro está, Vítor Baía. Mas, àquele que foi apontado por João Pinto (do FC Porto) como um dos melhores guarda-redes do mundo – “e talvez da Europa” (sic) – bastou cruzar a fronteira para provar, apenas, a sua mediania. Um jogo mau pelo Barcelona valeu-lhe a alcunha do “Manitas de Trapos”. Por falta de oportunidade – ou de classe pura… – nunca mais teve uma segunda chance de causar uma primeira boa impressão. Baía foi o último indiscutível da Selecção, por óbvia falta de concorrência. E, no mundial da Coreia, teve ocasião de dar inteira razão aos seus detractores de Barcelona. Pelo meio, tivemos nomes como Silvino, a quem muitos chamavam “O Pugilista”. Grandes reflexos nas bolas à queima-roupa, sobretudo pelas reacções a punho, mas medíocre nos cruzamentos e péssimo no remate de meia distância. Ou Fonseca, que não fez história, no Porto. Ou Conhé, ou Tibi, ou Botelho, ou Costinha, ou Pedro Espinha, ou Hilário… Ou Ricardo, o nosso famoso Ricardo, que todos conhecem, colocado na baliza nacional por Scolari depois de o treinador brasileiro ter ficado apaixonado por uma sua grande exibição contra o Brasil – era o “Sargentão” treinador da equipa canarinha -, num jogo treino antes do mundial da Coreia-Japão, e que empatámos 1-1… Os clubes, em especial os grandes clubes, começaram a apostar em vedetas estrangeiras: Mlynarzic (Porto), Preud’Homme (Benfica) ou Schmeichel (Sporting) foram as últimas estrelas, antes de as contratações terem mergulhado nesta apagada e vil mediania de Heltons e Moretos. Há quem diga que Rui Patrício é o guarda-redes do futuro. Pela estampa (à italiana) e pelas provas dadas – falta-lhe uma equipa que lhe dê mais confiança – pode ter algum sucesso. Mas ninguém o está a ver, para já, a ser cobiçado por qualquer clube de primeiro plano, a nível europeu. E nas camadas jovens não se vislumbra muito melhor. Portugal não está sozinho, na falta de tradição à baliza. O Brasil teve sempre esse problema, pelo menos até aos anos 90. Os goleiros raramente acompanhavam, em classe, as equipas galácticas que o futebol-samba produzia. Da Inglaterra, habitualmente, também nada vem de especial. A Espanha tem tido mais sorte e a França teve sempre – à excepção do último Europeu, em que o guarda-redes era um “furo” – keepers de qualidade igual ou superiores à da qualidade média da selecção. A Rússia, no tempo da URSS, sim, tinha uma verdadeira escola de guarda-redes. O mesmo se diga da Alemanha, que teve, desde Mayer, os melhores guarda-redes do mundo, ou a Itália, grande rival dos alemães neste capítulo. O nosso amigo Quim, vítima da sua própria exposição, nacional e internacional – muito superior, por exemplo, à de Bento, e sem os mesmos centrais à sua frente… – acaba por ser uma vítima do fado português. Afinal, Portugal é o primeiro consumidor europeu de carne de frango…
O drama de Quim
Portugal, que luta com um défice de pontas-de-lança de qualidade, é, sobretudo, um país sem escola de guarda-redes