Uma cremação não termina em cinzas. No fim, restam apenas os resíduos dos ossos calcificados que seguem para a trituração. O processo completo demora cerca de uma hora e meia, em que tenho de estar atenta à câmara de combustão, verificar se o queimador está a funcionar, controlar as altas temperaturas, acima de mil graus centígrados, através de um mecanismo com botões.
O meu irmão também é coveiro, mas nem posso tirar grandes dúvidas com ele, porque este forno não é igual ao do cemitério onde ele trabalha. Lá têm um computador e nós temos um “dinossauro”.
Todos os dias realizam-se vários enterros e entre três e cinco cremações, e quando não estou no crematório faço as limpezas do cemitério, com sopradores e roçadoras ou a varrer as ruas. É um trabalho muito físico. Embora não tenha de o fazer, sei a base para escavar uma sepultura, mas nas cremações também tenho de ter arcaboiço para ajudar a carregar o caixão para a transportadora – ainda ontem o caixão pesava 168 quilos.
Depois de 18 anos como cozinheira, quis mudar de ramo por questões financeiras. Quando me inscrevi em vários concursos para entrar na Câmara Municipal de Lisboa, este, para assistente operacional coveira, foi o primeiro e o mais rápido a aceitar-me. Não hesitei, o meu irmão também me incentivou, disse-me que não era nada daquilo que se pensa, não era estranho e era tranquilo. O meu marido, que é operador de call center, só me perguntou se eu tinha a certeza da mudança. E as minhas filhas [de 19 e 21 anos] acham imensa piada e dizem aos amigos, com orgulho: “Olha que a minha mãe é coveira!”
As pessoas ficam um bocado assustadas com a palavra cemitério, mas não era o meu caso. Não é a mesma coisa que trabalhar num jardim. No inverno, temos roupa para andar cá fora ao frio e à chuva, no verão, com o calor, é horroroso. No entanto, os turistas vêm aqui passear, os vizinhos vêm passear os cãezinhos e trazem as crianças como se fosse realmente um jardim.
“O cheiro foi o maior choque inicial”
Esta profissão foi totalmente nova para mim. Tive de aprender a criar mais empatia para quando estou a acompanhar os funerais. Tenho de lidar com os familiares e eles têm muitas dúvidas sobre como é a cremação. Há muitas pessoas que ainda acham que nós abrimos o caixão e tiramos os corpos lá de dentro, porque desconfiam da profissão.
Não sei dizer de onde é que vem o preconceito, mas que há, há. Os colegas diziam: “Mais uma mulher para aqui? Precisávamos era de um homem com força.” Entrei com confiança, percebo que isto é um mundo de homens, mas vim aqui para trabalhar e ponto final.
Cada vez que digo sou coveira, ouço: “Credo!” É o mais normal que me dizem sempre. Credo porquê? É um trabalho que tem de ser feito e eu faço. Infelizmente, em algumas cremações, temos pessoas que estão ali a olhar para nós de lado, como se tivessem nojo. Mas sou eu que estou a tratar do seu ente querido, para lhes entregar as cinzas.
Aprendi a ser muito mais tranquila. A maior diferença que senti quando troquei a cozinha do restaurante pelo cemitério foi a calma e o silêncio. Ganhei qualidade de vida, menos horas de trabalho. Na cozinha eram 12 horas, a sair de noite tarde e a entrar de manhã cedo; aqui são sete, também com turnos, das sete às 15 ou das 11 à 19 horas, mas o ordenado melhorou, ganhei estabilidade financeira.
Em funerais grandes, com mais gente, a herança é o assunto que vem logo à baila. Também já tive de fechar as portas do crematório para impedir uma senhora que queria, à força, entrar. Dizia que era “para ver o marido a arder nas chamas do inferno”
O cemitério tem cheiros diferentes. Imagine um jazigo cheio com corpos muito antigos, ainda dos finais do século XIX, e agora a família quer ter algum espaço para os novos mortos. É preciso fazer a exumação, abrir a sepultura e retirar os restos – é um cheiro que não sei descrever, não se parece com nada… Não é enxofre, é mais parecido com ovos podres, mas 30 vezes pior. Ao início, parecia que se entranhava na roupa e na pele, mas já não me faz diferença, já é tolerável.
O cheiro foi o maior choque inicial, pior do que o lado visual, como ter de espreitar para dentro do forno para ver em que fase vai a cremação. É muito mais impressionante do que corpos carbonizados que vemos nos filmes. A única situação que me faz ir para casa muito em baixo são os funerais de bebés. Infelizmente, já fiz quatro cremações de bebés e ver a dor dos pais é surreal. O sofrimento daquelas pessoas é muito pior do que o dos outros funerais. Nessas alturas, o meu pensamento é que Deus é injusto. E o pior é ter de explicar aos pais que a cremação de um bebé não dá cinzas, porque é um corpo muito pequenino, sem ossos, só com cartilagens.
Temos de criar mecanismos de defesa. Ganhamos uma armadura, mas temos de ter força de vontade para criar esse escudo, para ser forte emocionalmente. Às vezes, desligo um pouco e penso em coisas práticas da minha vida, como o que vou fazer para o jantar ou se as minhas filhas vão estar em casa, para me distrair daquele sofrimento, porque não posso estar sempre emocionada.
Também já apanhei grandes sustos, quando os meus colegas saltam do meio dos jazigos, e já assisti a episódios insólitos que nos dão muita vontade de rir. Num funeral com apenas três pessoas a assistir, a irmã, o cunhado e o filho do morto, entrou um senhor aos gritos pelo cemitério adentro a dizer que o falecido era o seu marido. Os familiares sabiam, mas não o queriam por perto. Foi num instante que marido e cunhado acabaram numa cena de pancadaria.
Em funerais grandes, com mais gente, a herança é o assunto que vem logo à baila. Também já tive de fechar as portas do crematório para impedir uma senhora que queria, à força, entrar. Dizia que era “para ver o marido a arder nas chamas do inferno” e outra avisou-me: “Você não tire os sapatinhos ao meu marido, são uns ténis Nike.”
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros