O nosso dia a dia suscita interesse e há quem se junte a nós para meditar. No Sumedharama, mosteiro budista da Tradição Theravada da Floresta [linha religiosa da Tailândia, com os mosteiros no meio da Natureza], temos quatro pequenos quartos com chuveiro para receber pessoas. Não cobramos nada, só pedimos que tenham genuíno interesse e que participem nas nossas rotinas. Têm de estar na meditação das cinco da manhã, seguida de cânticos e de atividades, que podem ser manutenção, organização, limpeza. Às sete horas, toma-se o pequeno-almoço, com papas de aveia, leite e pão; às oito, fazemos uma reunião para preparar o trabalho, jardinagem, pinturas ou arranjos antes do almoço, às 11.
A tarde é livre, para ser usada no sentido contemplativo, ler, meditar ou caminhar, sozinhos, de preferência. A última meditação é às 19h30 e, depois, recolhemos, sem mais nenhuma refeição. Do meio-dia até à aurora, não se pode comer conduto [sólidos]. Por vezes, a fome que dá é mais gula do que outra coisa. Chega perfeitamente.
O Buda disse para os monges não cultivarem nem cozinharem, para ficarem dependentes da população. As pessoas davam-lhes o nutrimento e os monges, a sabedoria. Esta é uma tradição completamente mendicante. Não podemos tocar em dinheiro.
Num dos primeiros jejuns que fiz durante uma semana, em 2004, quando era postulante no mosteiro budista Amaravati, em Inglaterra – e, antes de ser monge, gostava de comer um bom bife e beber um bom vinho –, a meio do jejum, quase que sentia os sabores a saírem de mim, como uma purga. Mas, no fim, a fome era de tal ordem que pedi uma rodela de tomate com um pouco de sal. E deu-me tanto prazer… é o prazer da fome.
O Buda não impediu ninguém de comer carne, só não podemos encorajar a morte de um animal para nos alimentarmos.
Todos os dias, um de nós vai até à vila da Ericeira, ao mercado municipal, e ficamos à porta, sem falar, seguindo o dizer: “O monge deve passar pela vila como a abelha pela flor.” A nossa aparência remete para algo religioso; as pessoas sabem que nos podem dar alimentos.
O silêncio não é forçado, é voluntário. É muito importante para se conseguir chegar a estados mais subtis de consciência, que se aproximam da perceção extrassensorial, do transcendental.
Fumei durante 17 anos e bebi café durante muito tempo, mas queria renunciar ao café e há um ano consegui – só bebo um descafeinado aqui e acolá. Já as bebidas alcoólicas são proibidas, até dentro dos bombons. Tudo o que é intoxicante vai contra o objetivo do enriquecimento e da expansão da consciência. Tem de se perceber os fundamentos de cada regra, que é proteger de algo.
É normal visitar a minha família, é um dever, principalmente em relação aos pais. Em breve, vou passar algumas semanas com a minha mãe, de 88 anos, e pode acontecer ceder à tentação de tomar um café. Os rituais dependem da autodisciplina interior.
“Estou porque quero”
No domingo passado, saí para ir votar nas eleições. Achei que estamos numa fase em que é preciso não fazer parte da abstenção. À noite, consultei a internet para ver os resultados. Há internet para os monges com funções administrativas, podemos consultar o email, ler notícias; às vezes, vejo documentários ou um filme. O entretenimento também tem restrições. Queria ter ido ao concerto dos Coldplay, no ano passado, em Coimbra, mas não devo.
Estou nesta vida porque quero. As saudades que tenho de compor música, tocar guitarra ou surfar não superam o lado espiritual; consigo manter isso como secundário face às minhas prioridades.
O entretenimento também tem restrições. Queria ter ido ao concerto dos Coldplay, no ano passado, em Coimbra, mas não devo. Estou nesta vida porque quero. As saudades que tenho de compor música, tocar guitarra ou surfar não superam o lado espiritual
Não posso fazer jogging, mas posso fazer flexões, abdominais, ioga, saltar à corda. Posso ir à praia se lá estiverem poucas pessoas ou se estiver vazia, para tirar o hábito e tomar banho de calções no mar. A liberdade existe, mas, se me sentisse demasiado limitado, saía.
O voto de castidade e celibato é obrigatório para quem é ordenado no budismo monástico. Se sentir um apelo muito forte para ter uma relação amorosa, saio. Existe a possibilidade de deixar de ser monge; desordeno-me e, depois, posso voltar, para um nível inferior. Não há tabu quanto à energia sexual: encara-se de forma prática, aberta e sem reprimir, para não derivar em distorções.
“O apelo espiritual era muito forte”
Nasci em Lisboa. Tive uma infância normal, em que queria ser aviador, bombeiro ou mineiro. A minha adolescência foi um período difícil, havia um “karma” na relação com o meu pai, mas ultrapassámos.
Sempre tive uma ligação forte com a Natureza e pensava seguir arquitetura paisagista ou engenharia florestal, mas segui Engenharia Agrícola na Escola Superior Agrária de Castelo Branco. Sempre fui muito dado, era um jovem sociável. Fiz parte da Quercus, de 1990 a 1995.
O despertar do interesse pelos mistérios da vida, pelas matérias espirituais, aconteceu quando estava na universidade, após o fim de uma relação amorosa, em que senti necessidade de me agarrar a algo.
Ainda trabalhei quatro anos, de 1998 a 2001, no Centro Nacional de Informação Geográfica. Mas o chamamento interior para libertar asas mantinha-se e, aos 33 anos, fui em peregrinação pela Europa. Foram cinco meses muito importantes; não estava com nenhuma carência emocional e o apelo espiritual era tão forte que superou toda a busca da verdade. A força motriz foi o propósito histórico-espiritual, mas sem o lado do lazer e da distração. Das duas vezes que visitei o mosteiro budista Amaravati ainda não tinha pensado ingressar na vida monástica. A minha ideia era arranjar novo emprego, ter a minha casa, o meu canto, a minha biblioteca e o meu assento para meditar.
Fui trabalhar num pomar no Fundão, mas percebi que assim não iria conseguir realizar a minha busca. Queria mais. O meu apelo era para ser uma prática a tempo inteiro. Não basta não ter nada para fazer – a nossa cabeça tem de estar minimamente em paz para entrar numa busca espiritual.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros