Tenho uma tia que conta que, desde pequenina, eu dizia que queria ser “polícia de guardar maus”. Sempre tive curiosidade sobre o motivo de aquelas mulheres cometerem os crimes. Em 2008, quando entrei no Estabelecimento Prisional de Tires, ia muito assustada. Passado aquele portão enorme, lá dentro, o que quer que aconteça não é visível a ninguém. Por isso, comecei a dar-me a conhecer um bocadinho às reclusas. Pensei: “Qualquer dia, estou sozinha num terceiro piso com 80 reclusas… sem câmaras, sem telefone, sem bastão. Na altura, nem sequer rádios tínhamos; era só eu e um molho de chaves.”
Há muita falta de recursos. Nos pavilhões grandes, com 180 mulheres, encontramos muitas delas abandonadas, umas entregues à sua sorte desde que nasceram, outras porque foram condenadas e ninguém quer saber delas. Sem visitas, a família não lhes leva roupa, pasta de dentes ou pensos higiénicos – essas coisas mexeram muito comigo.
Prefiro não saber o crime cometido. Tive uma senhora de 66 anos que era pedófila. Vivia com o seu segundo marido, que não era avô dos seus 13 netos. Ela dizia aos filhos que tomava conta deles e era para dar as crianças ao marido – ela própria tinha prazer com isso, confessou-o. Para mim, é o limite do pior.
A maior parte está presa por causa do tráfico de droga, um dinheiro muito fácil e rápido, pensam elas. Há roubos e prostituição que derivam do tráfico, com esquemas bem montados. Há reclusas de origem brasileira, por exemplo, apanhadas no aeroporto, que estavam mesmo no limite da escassez.
Na Casa das Mães, os filhos até aos 3 anos podem ficar com elas. Custa-me muito ver aquelas crianças que não fizeram mal nenhum e estão presas, mas em 80% dos casos prefiro que estejam ali. Uma vez, depois de dar à luz, uma mulher agarrou-me nas mãos e disse: “Peça para eu ser condenada. Se ficar aqui, a minha filha vai ser operada [nascera com lábio leporino], tem leite e fraldas e não tem de começar a comer da panela.” Graças a Deus, foi condenada.
Ali, nós não somos só guardas, somos quem pega nos bebés ao colo quando estão a chorar, estamos lá quando têm febre e a mãe está isolada. As mães parece que deixam de saber tomar conta dos filhos; à mínima tosse, entram em pânico. Somos o braço-direito da mãe. Chegamos a inventar vapores, com rebuçados de eucalipto dentro da chaleira com água quente.
O dia em que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foi buscar o Vítor e a mãe foi muito complicado para mim. A criança estava habituada a pessoas vestidas de azul e a carrinhas celulares e, de repente, vê um carro civil e pessoas sem farda. Agarrou-se a mim, e só eu o consegui pôr na cadeirinha no carro, para voltar para o seu país. Penso muito na história destas pessoas e acho que a minha depressão, em parte, também se deveu a isto.
“Também me sinto presa”
Estive nove dias internada só para dormir e um ano ausente, de baixa médica. Vivo em dois mundos muito diferentes dos das outras pessoas, porque daquele portão para dentro fico 48 horas, no mínimo, sem ver as minhas filhas.
Nem elas nem nós temos telemóvel. E os telefones que existem só ligam internamente. O meu telemóvel tem as chamadas reencaminhadas para o número do meu marido, e na escola da minha filha mais nova, com 11 anos, têm indicação para telefonar para o número geral. Tenho sempre o coração nas mãos, até porque tenho uma filha rebelde, que às vezes desaparece, e anda meio mundo à procura dela. Só na hora de almoço posso ir à portaria e ver o telemóvel. Também me sinto presa.
Fiquei doente numa altura em que se suicidaram várias reclusas no espaço de meio ano. Sem qualquer formação específica, temos de ter muita estaleca para lidar com as que têm surtos psicóticos, as que se cortam, as que dizem ouvir vozes a mandá-las matarem-se. Sabendo o que sei hoje, pelo salário e pelas condições de trabalho, talvez trocasse de país, mas sempre na mesma profissão.
Não me posso distrair com nenhuma reclusa. Enquanto acompanho uma delas do pavilhão 2 (onde estão as condenadas) até aos serviços clínicos, se a reclusa correr mais do que eu, estou tramada. Sem segurança e com os muros baixos, consegue fugir. Já passei por uma situação em que levava seis, uma de cada vez, para irem fazer análises ao sangue. E uma delas avisou-me de que, dentro da carrinha, se preparavam para fugir.
Temos ali mulheres presas há 17 anos, sem curriculum, e, para qualquer trabalho, vão-lhes pedir o registo criminal. Com a folha suja, nem para varrer ruas as querem. Além disso, entraram na cadeia no tempo em que os telemóveis eram de teclas e saem para usar telemóveis que fazem videochamadas. Como se adaptam?
Quando uma mulher vai de precária, toda a gente se preocupa para que não saia da sua área; quando sai em liberdade, ninguém quer saber se tem para onde ir. Se eu ganhasse o Euromilhões, arranjava uma quinta, para ter animais e árvores de fruto, e ia buscar estas raparigas e mulheres que quisessem recomeçar a vida. Quando são toxicodependentes, voltam ao único lugar que conhecem: a rua. Dou-lhes este conselho: “Tenta não voltar aos mesmos amigos, aos mesmos grupos; tenta fugir da tua zona.”
A forma de estar das reclusas mais mediáticas, as dos casos que aparecem nas notícias [como Rosa Grilo ou Diana Fialho], é diferente da das outras. Tentam fazer, lá dentro, uma vida perfeitamente normal, como se estivessem cá fora. Há mulheres a estudar na faculdade, outras optam por trabalhar no bar ou estão de faxina no pavilhão. Muitas vezes, as histórias que oiço nos noticiários não batem certo com o que elas me contam.
Não questiono ninguém e não as consigo julgar. Para mim, são todas iguais e, se estão aqui, é porque um juiz decidiu. Mas não acredito que a Justiça é sempre justa.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros