Na primeira pessoa: “Um ‘amigo’ agrediu-me sexualmente quando eu estava demasiado bêbeda para o consentir”

Na primeira pessoa: “Um ‘amigo’ agrediu-me sexualmente quando eu estava demasiado bêbeda para o consentir”

As memórias mais marcantes da nossa infância estão guardadas numa gaveta especial. Tenho muito presente a tarde em que, com 5 anos, numa loja, comecei a chorar e a dizer à minha mãe que não sabia porquê, mas precisava urgentemente de ir para casa. Aos 10 anos, implorei aos meus pais que me levassem ao hospital: tinha a certeza de que a minha garganta estava a fechar. Aos 12 anos, saí de uma aula a correr porque não conseguia mais estar dentro da sala. Foi nesta altura que comecei a sentir um buraco dentro de mim. Ao contrário do que possa pensar-se, o buraco não estava sempre vazio: havia alturas em que estava cheio de tristeza, e outras em que eu me sentia no topo do mundo.

Aos 14 anos, pedi à minha irmã mais nova que tapasse os ouvidos e gritei ao meu pai que conduzisse rápido para chegarmos depressa a casa, para ela não me ver a morrer. Não morri. Ao invés, reuni toda a coragem que tinha e pedi para ver um psiquiatra. Nunca esquecerei o alívio que senti ao perceber que não era a única pessoa no mundo a lidar com isto, quando deram nome às euforias, aos fundos do poço, aos medos infundados, às dores. Não há sensação comparável à de não se estar sozinho. O choro mais bonito é o que se liberta, sem pedir licença, em lágrimas de esperança num futuro de paz interior.

Nunca esquecerei o alívio que senti ao perceber que não era a única pessoa no mundo a lidar com isto, quando deram nome às euforias, aos fundos do poço, aos medos infundados, às dores. Não há sensação comparável à de não se estar sozinho

Diagnosticaram-me com perturbação de pânico e transtorno bipolar. Em Portugal, o acompanhamento psiquiátrico não é facilmente acessível, e conseguir tê-lo foi pura sorte. Falar com pessoal médico especializado e poder comprar medicação salvou-me a vida. Tenho consciência de que não estaria aqui se não tivesse sido rapidamente medicada, se continuasse a viver numa montanha-russa emocional com repercussões físicas demasiado reais para manter o meu corpo saudável. É urgente disponibilizar psicoterapia aos que sentem diariamente que não chegam ao próximo aniversário.

A recuperação não é linear, não significa que todos os dias vão ser melhores do que os anteriores, mas representa uma esperança sustentada de que vai haver dias bons. E um dia acordei sem suster a respiração. Não estava transpirada, nem a tremer, nem tinha um alarme no lugar do coração. Regredi várias vezes, achei que estava tão bem que não precisava da medicação. É um erro bastante comum. E dói quando a ansiedade nos começa a morder os calcanhares novamente, quando algo não nos deixa sair da cama, quando choramos sem razão, ou quando não conseguimos sentir uma única emoção. Dói especialmente percebermos que não vamos nunca ser independentes da medicação. A impotência, a mágoa, o rancor que guardamos a nós próprios.

Após a recaída, vem a aceitação. Aceitamos que as doenças mentais são como as físicas. Ninguém é menos por ter de injetar insulina, ou tomar comprimidos para a tensão, e nós também somos mais do que a condição que não controlamos. Os episódios maníacos e depressivos, as emoções exacerbadas não são nem 1% daquilo que eu sou: a pessoa, a mulher, a filha, a irmã, a amiga, a ativista, a revolucionária.

“Sou uma sobrevivente”

Aos 20 anos, embarquei na maior aventura da minha vida: o programa Erasmus. Foram os melhores meses da minha vida. E ali passei um dos piores dias, quando me preparava para regressar a Portugal.

A forma mais comum de o meu cérebro reagir ao trauma é apagando-o. Aconteceu com meses inteiros da minha vida, quando ainda não estava medicada, e aconteceu a 21 de dezembro de 2021, quando acordei num comboio, cansada e com sede, sem memória de lá ter chegado. Eram dez da manhã. Sabia que estava a caminho do aeroporto, que ia para casa.

Recebi uma chamada importante. Um “amigo” meu passara as últimas horas a divulgar que tínhamos tido relações sexuais. Chorei durante semanas. Sabia que o que quer que tivesse acontecido tinha sido contra a minha vontade, que não consentiria as coisas que me disseram ter sido feitas por aquela pessoa. Na altura, não contei a ninguém que a última lembrança que tinha dessa noite era a de entrar no meu quarto, depois da minha festa de despedida, sozinha, para ir descansar, antes do meu voo.

Fiz uma pergunta hipotética a dezenas de pessoas: se era abuso sexual dormir com alguém que estava tão bêbedo que só se lembra de adormecer na cama e acordar quatro horas depois, noutro sítio. A maioria disse que sim. Chorei mais, tive vergonha e muito medo. Mas não tinha de ter vergonha, nem medo. Um homem em quem confiava agrediu-me sexualmente quando eu estava demasiado bêbeda para o consentir. Não foi culpa minha, foi toda dele. E agora sei isso. Com a ajuda necessária, processei o que me aconteceu. Despi-me dessa culpa, que não era minha, e contei a minha história.

Não sou uma vítima – sou uma sobrevivente. Vou curar esta ferida, como já curei outras, e tornar esta luta mais minha do que já era. A violência sexual é das coisas que mais mulheres vitimizam na nossa sociedade.

Não é fácil admitir isto. A nós próprias, ao mundo. Fi-lo como forma de libertação. Escrever este texto é reclamar-me como minha. Por isso, por favor, acreditem na coragem de quem se expõe, de quem partilha, de quem luta com o próprio corpo. Acreditem nas que sobreviveram, pelas que não conseguiram. Valorizem os testemunhos de violência sexual de quem ficou para contar a história. Lutem por nós e por todas. Que estas coisas não são nada fáceis, nem justas.

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