Tudo começou com Águas de Verão. «Era em Setembro que chegávamos em bando». Eu deveria ter uns 5 anos e, nas noites de Verão algarvio, a minha irmã, seis anos mais velha, deitada na outra cama, lia para mim, em voz alta, o romance acabado de sair de Alice Vieira. Foi assim que conheci os quatro irmãos Bé, Marta, Francisco e António; o senhor Gualberto, o do saxofone, as termas carregadas de sais, de achaques e de muita brincadeira entre a «canalha», como diria a Irene, com o cesto de roupa branca à cabeça, o que levaria a Mãe da história, a um quase desmaio. Parece que a estou a ouvir ? «Chamar canalha aos meus filhos! Isso é que não!» ? e com ela a lembrar-me da angustia, daquela que se prende atrás da garganta, pela injustiça de, nas últimas páginas, terem despedido o senhor Gualberto, só porque ele era um bocadinho doido («O menino é sócio dos que são sócios ou é sócio dos que não são sócios», costumava perguntar aos miúdos que por ele passavam), um bocadinho músico, um bocadinho alegre no meio dos vapores e da comida sem sal ? onde nem a sobremesa, aletria acho, escapava à insipidez. Foi ali, com aquelas personagens vivas na voz da minha irmã, na escrita da Alice Vieira que, antes de aprender as letras, eu aprendi a ler. E foi já sozinha que li Rosa, minha irmã Rosa, Lote 12, 2.º Frente, Chocolate à Chuva, o hilariante Graças e Desgraças da Corte d-El Rei Tadinho, A Espada do Rei Afonso, Este Rei que Eu Escolhi. Foi com Flor de Mel que imaginei, cantarolando sempre para dentro, a canção de embalar que ainda hoje sei de cor. Com Úrsula, a Maior que descobri o Frei Luís de Sousa, e com Joana Ofélia, de Se Perguntarem por mim digam que voei, que aprendi que todas as janelas servem para voar. E sorri com os jantares dos velhotes de Às dez a porta fecha, chorei com o Touro Sentado desaparecido nas pradarias do corredor, sem poder nunca mais ver Os Olhos de Ana Marta. Em cada novo livro uma surpresa, longe do tonzinho didáctico que sempre me irritou nos livros ditos para a infância. Esse tom que Alice Vieira nunca quis ter, como diz na entrevista que publicamos nesta edição, onde conta que troca correspondência com alguns dos seus leitores há quase 30 anos. Para mim, foram precisos mais de 20 ? e tantas outras histórias ? para encontrar coragem para lhe escrever. Aqui fica a minha primeira carta.