Silêncio. O vento uiva, a chuva tiquetaqueia as folhas das plantas, o cascalho do caminho, os pensamentos dos caminhantes. Silêncio. Uma águia corta os céus, uma cabra montanhesa levanta a cabeça, atenta. Silêncio.
A humidade penetra a terra e dela libertam-se o odor a madeira e o ritmo de passos coordenados, numa subida de quase mil metros. Silêncio.
O trilho íngreme, feito de curvas e contra curvas, afasta-se, cada vez mais, dos vales verdejantes. As pedras deslizam sob os pés, as nuvens adensam-se. Silêncio. Os ouvidos fecham-se sob a pressão de quase 2600 metros de altitude.
Ao longe, uma casa e, depois, perfiladas uma a uma, surgem as encostas de centenas de montanhas, catedrais de rocha erigidas neste topo do Mundo há milhares de anos. “São pedras ou são nuvens? São verdadeiras ou apenas um sonho?”. A pergunta que Dino Buzzatti fez, em Le Montagne di Vetro, ecoa entre as paredes mastodônticas e os cumes que rasgam o céu. Silêncio.
Tal como numa sala de espetáculos, segundos antes de a orquestra atacar as primeiras notas, sustemos a respiração. É então que a natureza explode, dentro e fora de cada um, numa sinfonia de silêncios, entrecortada apenas pelas notas de uma suite de Bach, que sai do violoncelo de Mario Brunello (MB) e voa em direção aos 50 km quadrados do planalto rochoso de Pale di San Martino, nas Dolomiti.
Não é um sonho, mas parece. Poucos terão assistido ao momento em que os silêncios da natureza invadem e são invadidos pelos silêncios da música humana. Ainda menos poderão gabar-se de terem ouvido Bach imersos nas montanhas que inspiraram o Deserto dos Tártaros e que foram definidas por Le Courbusier como “a obra arquitetónica mais bela do Mundo”.
Com mais de 141 mil hectares e ocupando três províncias do norte de Itália – Trentino-Alto Adige, Veneto e Friuli Ocidental – as Dolomiti, cordilheira dos Alpes orientais declarada pela UNESCO, em 2009, Património da Humanidade, são palco, desde 1995, de I Suoni Delle Dolomiti, um festival de música em altas cotas, criado precisamente com o intuito de celebrar o espanto e a maravilha que tais montanhas conseguem imprimir na alma de quem cruza o caminho das suas vidas com elas.
Há 29 anos que o festival leva músicos de todo o mundo a tocarem em diversos locais das Dolomiti, desafiando-os a dialogar com um silêncio que “não é sinónimo de vazio nem contrário de rumor”, mas sim “ressonâncias entre artistas, público e natureza”, lê-se no manifesto.
“O verdadeiro silêncio não existe, sabemos bem. Enquanto houver uma vida, um coração que bate, um sistema nervoso, não pode haver silêncio. Até mesmo estas montanhas têm o seu próprio silêncio, feito do ar que passa, das pedras que rolam, dos animais que aqui vivem, o qual se transforma na base para a música que aqui tocamos, seja a nossa ou a de outros”, defende MB (ver entrevista), diretor artístico do projeto desde 2017 e músico convidado desde a sua 1ª edição.
Além de 17 concertos gratuitos, este ano realizados entre 28 de agosto e 29 de setembro, aos quais se acede através de caminhadas simples, de cerca de 40 minutos, em trilhos de montanha, o festival conta ainda com um trekking de três dias, em que o JL participou, durante o qual os participantes caminham lado a lado com músicos que, de tempos a tempos, param para tocar.
O grupo de cerca de 40 pessoas que assiste ao concerto, em Pale di San Martino, está precisamente no final do primeiro dia desta caminhada. Deixou os campos de Malga Fosse de manhã cedo e, acompanhado de guias alpinos, do maestro Brunello, do seu filho Pietro, também ele músico, e do guitarrista e intérprete de banjo Alessandro “Asso” Stefana, subiu até ao cume Rosetta.
A meio da manhã, o sol de setembro, que ainda se fazia sentir a baixa altitude, agraciou uma primeira paragem, durante a qual os três músicos tocaram obras de Bach e uma série de peças compostas por Judith Weir, inspiradas nas canções das prisões dos Estados Unidos da América, recolhidas, nos anos 1930, pelos irmãos Lomax.
Durante a manhã do primeiro dia de caminhada, o sol ainda brilhava (ftgr 1,2,3 e 4); Chegados ao refúgio do cume Rosetta (ftgr 5,6,7 e 8), a 2581 m de altitude, os caminhantes ouviram o segundo concerto do dia (ftgr 9); No dia seguinte, continuaram a caminhada, sempre acompanhados de Mario Brunello, que nunca deixa de levar o seu violoncelo às costas (ftgr 10 e 11) FOTO: Trentino Marketing e JL
Música que se entrega à Montanha
O segundo dia amanhece mergulhado num nevoeiro que confere à paisagem um caráter quase lunar. Muitos dos caminhantes são “repetentes” do trekking. Trocam-se histórias sobre edições passadas, comenta-se a dificuldade e a beleza do caminho, bem como a sensação de humildade perante os lentos gigantes de pedra que ladeiam a estrada.
Gioia tem 83 anos e lembra-se de Pietro Brunello quando ainda era uma criança, Ettore tem 84 e comenta que, na juventude, nesta mesma altura do ano, costumava brincar com o irmão num glaciar, “por onde passaremos hoje, mas onde já não há gelo nenhum”.
Cada um entrega o que pode à estrada, seja música, memórias de outros tempos ou a capacidade de contemplar. E, de novo, o silêncio. Que nos esmaga por nele ecoarem todos os sons do mundo. É o antes, o durante e o depois do rumor. A cada passo, “parece que a natureza pede um silêncio para fazer ouvir o seu respiro, a sua música”, afirma MB.
Solista, maestro e músico de câmara, e recente pioneiro de uma nova sonoridade, com o seu violoncelo piccolo, Brunello tocou com as mais prestigiadas orquestras do mundo, das Sinfónicas de Londres, São Francisco e Tóquio à Orquestra de Filadélfia ou as Filarmónicas da Radio France e do Teatro alla Scala, entre outras – mas é nas montanhas que se sente mais feliz.
Tocar o seu amado violoncelo rodeado das Dolomiti que o viram crescer é algo que faz desde a adolescência, contou ao JL na segunda noite de caminho. A relação com a natureza é profunda e recorda com carinho os dois concertos que, este ano, deu no Grande Auditório da Gulbenkian, espaço em contacto permanente com a paisagem exterior.
Apesar de vir do universo da música clássica, Mario Brunello tem procurado introduzir outras sonoridades no festival, nomeadamente o fado, através de Carminho, artista que abriu I Suoni delle Dolomiti nesta edição de 2024.
O maestro tem dificuldade em escolher um momento ou local preferido das últimas 29 edições, mas revela que, todos os anos, a chamada Alba delle Dolomiti, um concerto precedido de uma caminhada noturna, que se realiza ao raiar da aurora, é muito especial.
O segundo dia de caminhada (ftgr 1,2,3 e 4) desenrolou-se do refúgio Rosetta até ao refúgio Pradidali, com diversas paragens musicais; Ao terceiro dia, a chuva miudinha acompanhou músicos e caminhantes durante toda a descida até ao sopé da montanha (ftgr 5 a 11) FOTO: Trentino Marketing e JL
Concerto ao nascer do sol
Uma semana e várias centenas de quilómetros separam a Alba delle Dolomiti da caminhada de Pale di San Martino. Por volta das cinco da manhã do dia 8 de setembro, milhares de pessoas acorreram aos teleféricos das pistas de esqui de Madonna di Campiglio em direção a Passo del Grosté, a 2442 metros de altitude, ponto de partida para o passeio de cerca de meia hora até ao teatro a céu aberto onde, este ano, o ensemble de música de câmara da Royal Concertgebouw Orchestra tocou três obras de Mozart.
As expectativas criadas por Mario Brunello não saem defraudadas. Chegados ao local, às primeiras horas da alvorada, calamos as palavras e os pensamentos, e esperamos. Breves segundos antes do sol nascer, a natureza parece querer anunciar-nos o espetáculo que estamos prestes a testemunhar.
Por detrás dos cumes, à laia de pancadinhas de Molière, levanta-se uma aragem fria, um sussurro de vento que atravessa o espaço, faz eriçar flores e pedras num breve arrepio, e abre caminho para a luz da manhã, revelando um mar de cumes rochosos, à medida que o sol toma conta do horizonte.
No vale, os músicos atacam um quinteto para clarinete. Esforçamo-nos por agarrar com as duas mãos os sons, as cores, os cheiros do momento. Em suma, o silêncio das Dolomiti. Um silêncio que, no coração de cada um, soa à soma de tudo aquilo de mais intenso e profundo que tenhamos vivido.