Aprendi a ler sozinha, comigo mesma, menina magrinha, mãos de fuso no tecer das páginas dos livros indevidos para a pouca idade, que às escondidas, subindo as escadas da biblioteca do meu pai, tirava das estantes, para depois, aninhada no chão, mal soletrando, tentar seguir linha após linha, a querer desvendar histórias a maior parte das vezes para mim sem sentindo, mas das quais, sem saber porquê, .cava suspensa.
«Palavras de manso linho», ouvia ao longe cantar minha avó, distraindo-se de mim, afinal mais secreta do que eu escondida na penumbra do escritório, ela com os seus segredos de sufragista clandestina, comigo apenas por testemunha calada, sem perceber o significado das reuniões a que me levava: mãos dadas as duas, estugando o passo, vento descendo a querer desfazer os laços das tranças atiradas para trás das costas do meu casaco de fazenda inglesa azul escura com golinha de veludo. Aragem a tornar-se mais forte na subida, a fazer desequilibrar o chapéu de feltro preto mal preso por dois pregos de minúsculas pedrarias negras nos seus cabelos muito brancos.
«Vá Teresinha, que chegamos atrasadas» apressava-me, baixinha e delgada, olhar de violeta aceso, ao empurrar com os dedos afuselados, parecendo feitos de papel de seda, o portão de ferro forjado da Casa-Jardim, onde se reunia com fascinantes mulheres no início de algumas tardes. E apesar de curiosa e atenta, de imediato me resguardava na sua anca a defender-me, cara escondida no seu fato de seda com cheiro a alfazema.
Mas logo elas me disputavam, pegando-me por baixo dos braços, a sentarem-me nos colos macios e perfumados ou nos joelhos luzidios das meias de seda, entoando com riso alto nas vozes ora estridentes ora suaves, «Ó menina, ó menina dos olhos azuis!» E eu, envergonhada, de imediato os fechava, sentindo-me um pouco tonta e perdida, mas sem susto; enquanto elas continuavam a passar-me de umas para as outras, até que por fim a minha avó me chamava para si, indagando: «Não falas à Maria?» E quando, anos mais tarde, a Maria Lamas me afirmou «Andei consigo ao colo», de imediato me lembrei do seu então jovem olhar entornado de mel, e do leve cheiro a pelica das luvas tiradas com vagares de cuidado, para me dar os rebuçados guardados para mim nos seus bolsos. Era a altura de abrirem as pequenas caixas de cartolina fraca, os embrulhos onde se acomodavam os bolos que algumas traziam para o lanche, e o momento de eu adivinhar qual era o livro da coleção Joaninha que a minha avó me havia comprado.
Em seguida esquecia-me pela berma daquele manso rio, dividida entre a margem maravilhosa da escrita no seu deslindar palavra a palavra e a margem de onde observava subir a maré empolgada das vozes femininas, feita com a espuma do sonho, enquanto elas iam arquitetando o futuro.
Se no entanto interpelavam minha avó «Porquê Camila? Explica!», levantava o rosto inclinado para olhá-la, tão delicada e segura no responder, serenidade tranquila e lisa, mas igualmente de conforto e agasalho. Depois, voltava a mergulhar naquele que sempre foi o meu universo, dependente desse vício mágico.
«A menina já lê?» admiravam-se ao princípio, e eu hesitava na resposta, não destrinçando entre aquilo que lia e aquilo que inventava, numa mistura de prazer infinito impossível de explicar aos outros.
«Palavras de manso linho», ouvia cantar à distância minha avó, som abafado pelas carpetes das salas, os tapetes dos quartos, as passadeiras do corredor pequeno e do corredor comprido, ignorando ela assim a minha ausência, enquanto eu espiava no escritório do meu pai, para onde me escapava quando era possível, a deleitar-me quer com o cheiro dos livros, mistura almiscarada de papel e de pele das encadernações, quer com a descoberta dos títulos das lombadas, instável no cimo da escada de madeira encerada a escolher um deles, para ir enroscar-me no sofá de veludo perto da janela entreaberta, passando e repassando pelo sentido das frases, e assim aprendendo a lê-las, alinhando-as umas a seguir às outras, através da história.
Volumes grossos a custo retidos nas mãos pequenas, dificilmente a mantê-los direitos, apoiados nos joelhos subidos, descalça, pernas encolhidas na maciez do assento. E ainda sei alguns dos seus títulos, nessa altura para mim tão difíceis: Uma Família Inglesa, Olhai os Lírios do Campo, Dom Quixote de la Mancha, A Filha do Regicida, A Cidade e as Serras.
E eu ali me demorava as horas que me olvidavam.
Continuando neste momento a ver surgir minha mãe por entre os cortinados que tapavam a porta, vestido de cetim a moldar-lhe as coxas altas, pele de uma transparência de cristal de rocha, e de tão loura luz.
A empurrar-me com o tom áspero da sua permanente insatisfação e ressentimento: «Nunca largas os livros? Vai para o quintal brincar com as tuas irmãs rapariga, vai brincar!» Mas ficava satisfeita quando era a minha avó a reclamar-me, num murmúrio baixo, jeito cúmplice a aproximar-nos mais uma da outra «Depressa Teresinha, é dia de irmos», e eu já sabia aonde, coração aos pulos, alvoroçada. E lá seguíamos de eléctrico, misteriosas, como nos filmes do Éden ou do Politeama: heroínas enigmáticas a despistarmos quem nos seguia esmerava-me no imaginar e quando regressávamos a casa, a horas de roçar o crepúsculo, não me lembro de alguma vez a minha avó ter esclarecido o meu pai, seu filho, sobre o lugar de onde vínhamos.
Deixando nebuloso o sítio, a morada, e todos os nomes daquelas surpreendentes amigas.
«Anda, anda, que não começam sem termos chegado”, entusiasmava-me ao transformar-me numa delas, e eu, passo miúdo, quase corria a seu lado, pulso fininho agarrado pela sua mão seca, tépida e terna, num fechar de pulseira. E desse modo, asinhas, lá nos íamos esgueirando pelo Verão ou pelo Inverno, bolos de creme e baunilha num pacote atado com laço azul celeste, oculto sob uma das abas-asas da sua capa escura, erguendo-se à cadência transparente do andar alado, a reforçar-lhe o ar de fada que na realidade era. E quando nos atrasávamos demais, mal abríamos o portão e o sininho pendurado do lado de dentro tocava num som metálico e alegre, logo elas corriam ao nosso encontro, por entre os jacarandás, as rosas rubras e a magnólia do jardim, reclamando aliviadas: «Ainda bem que chegaram, vêm tão tarde, demoraram tanto», falando ao mesmo tempo e fazendo-me festas.
Ainda gosto de relembrar aquela agitação, aquela espécie de esvoaçar pela casa, numa confusão harmoniosa de perfumes misturados: gardénia e madre-silva, de água de rosas, de colónia, de pó-de-arroz e rouge, onde me perdia escutando o roçagar das écharpes de chiffon e das saias de tafetá escarlate das mais novas, lábios carmim, unhas compridas pintadas de vermelho e cabelos puxados ao alto, à refugiada. «Porque não trazes a tua nora?», indagavam admiradas, e a minha avó disfarçava desviando a conversa, sem querer confessar estarmos ambas ali às escondidas, nem o facto de a minha mãe preferir por certo e por hábito ir tomar chá às pastelarias da Baixa, indiferente ao que acontecia no mundo. E porque quase todas entendiam o súbito mal-estar, passavam à frente, a iniciarem outra daquelas discussões compridas e melodiosas aos meus ouvidos, apesar de permanecerem difusas nas recordações guardadas.
Nunca porém as reuniões começavam antes de me ser entregue o livro dessa tarde: depois da coleção Joaninha, a Manecas, e meses mais tarde Os Desastres de Sofia e As Meninas Exemplares, da Biblioteca das Raparigas. Um dia deram-me As Pupilas do Senhor Reitor, reclamando outra, condoída: «Coitadinha da menina, não vai perceber nada». Mas ao lê-lo, pressenti um dissonante travo adulto, a sobressaltar-me. Por isso, jamais desligo esses inesperados, ousados e arriscados encontros feministas, no auge do Estado Novo, ao singular fusionamento dos universos moralistas da Condessa de Ségur e do Júlio Dinis.
Em perfeita sintonia. Pelo avesso um do outro.
Sufragista, a autobiografia de Maria Teresa Horta
Gonçalo Rosa da Silva
Faleceu, aos 87 anos, Maria Teresa Horta, poetisa, escritora, feminista, de importância fulcral para a literatura e os direitos das mulheres em Portugal. Publicamos aqui a 'autobiografia', que escreveu para o JL em 2005